Memórias/Memorialistas (XXXIX)

Seguindo-te, seguimo-nos… E o que é morte/subitamente sobe do mais fundo/das coisas como vida que suporte/qualquer rude desgaste, e do desgosto/de ser um sonho só no áspero mundo/- como uma  cicatriz no nosso rosto,/que oculta outra invisível cicatriz -, extrai  uma certeza comovida,/uma essência mais funda de raiz,/qualquer coisa que irrompe/que nos lava/de claridade… Ao sonho, à dor, à vida,/leva-nos tu na tua nave, Nava.

(trechos de “Um poema para Pedro Nava”, de Alphonsus de Guimarães Filho)

Acabei de receber um zap.

Vejo que é uma mensagem do Paulo Duarte pedindo folga, muitas folgas. Analisei o pleito e resolvi que é justa a concessão de férias, só que parceladamente, em três vezes, nos moldes adotados no serviço público para os burocras que não são celetistas.

O deferimento me lança num dilema massacrante: qual escritor devo imediatamente reconvocar? Afonso Arinos ou Pedro Nava? Não há como escalar um e ficar sem o outro. A solução é tirar par ou ímpar. Pausa. Vamos lá… Deu o médico. Nosso político não se considere perdedor, porquanto brevemente voltará à cena. Hora portanto de agarrar o volume 2 das memórias. Início das referências, engendramento das costumeiras apropriações de obra alheia…

Pânico.

Numa das incontáveis mudanças e arrumações feitas no Teatro Mapati, a operosa turma de nosso espaço cultural, fiquei sabendo e virei uma arara, guardara tralhas inúmeras no sótão, tendo ido de cambulhada (heresia? crime?) o Balão Cativo  em alguma das dezenas de caixas que para lá foram transportadas. Derrota, sensação de desânimo, orfandade. Cedi ao conformismo, fazer o quê?, a busca era inglória, o segundo filhote se desgarrara da ninhada outrora tão organizada numa das estantes de nossa razoável biblioteca.

De que maneira deixar de margem uma obra prima dessas?

Agarrando-me a outra maravilha da literatura brasileira. Alcanço o volume 3, Chão de ferro.

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Sempre que se fala do Nava, das coisas que ele escreve, a compulsão é a de buscarmos saber desde logo o que acontece com os personagens capturados pela caneta, pela máquina de datilografar (à epoca, computadores eram miragens) do fenomenal memorialista. Uma coceira renitente, uma psoríase nos ataca devido à ansiedade de conhecer em minúcias quem, para o bem e para o mal, cruzara com o médico neste vale de lágrimas. E o esquadrinhamento do caráter daqueles indivíduos (notadamente a parentada) arrolados no livro se entremostra na descrição implacável das fisionomias, das roupas, dos trejeitos e, sobretudo, das atitudes que cada um e cada uma tomaram nas situações conflituadas ou de amizade e companheirismo.

Enquanto o Paulo Duarte curte seu merecido recolhimento, o Pedro Nava encontra-se em pleno período letivo.

“Entre aula e outra, tínhamos às vezes o que se chamava  hora vaga. Era quando se aproveitava para uma revisão da matéria, um retoque nas colas, leitura de romances ou de livrinhos de safadeza para banzar, sonhar, olhar as caras uns dos outros ou tomar conta do terreno (como cachorro com a mijadinha que é sua marca), gravando a canivete nas carteiras – estrelas de Davi, de Salomão, grelhas, círculos, cruzes, triângulos; hexágonos necleados, como células; nossas iniciais ou nome inteiro. Foi depois de uma destas vagas que travamos conhecimento com o nosso professor de Geografia. Era o gaúcho Luis Cândido Paranhos de Macedo – figura mitológica do colégio. Fora aluno na Chácara da Mata e tinha orgulho de dizer que nunca saíra do Pedro II.”

Não vamos largar o professor, que continuará sendo dissecado.

 

23 de março de 2016

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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