Memórias/Memorialistas (XL)

Como entoaria a banda mineira pop,  é fácil, extremamente fácil… cumprir a promessa feita na postagem imediatamente anterior, sob este título. Não é problemático – é prazeroso – manter em cena Luiz Cândido Paranhos de Macedo, o professsor do Colégio Pedro II onde o adolescente Pedro Nava fazia seus estudos e traquinagens, termo antigo, porém não sei se já usado por volta dos anos de 1910/1920.

Na contramão dos propósitos do padre que batizara o menino e do serventuário do cartório que registrara o sobrenome, o preceptor e figura principal aqui renovada nada tinha de cândido, de ingênuo, pois conhecia Casa e Pessoal de fio a pavio e as baldas dos alunos de cor e salteado. Quando vinham com milho ele mostrava o fubá.”

Vê-se que retomamos uma das principais qualidades do escritor nesse tomo 3, Chão de ferro,  que continuamos a evocar: a de nos permitir conhecer, através da sua pena de legista, os personagens na sua inteireza, expostos não facciosamente os defeitos e as virtudes. No trecho a seguir, usando de mistura, como metáfora, lições de geografia, a cátedra em foco, o aluno posteriormente travestido de um dos maiores memorialistas do Brasil causou com sua descrições impagáveis e irretorquíveis.

“Seu aspecto era formidando e olhá-lo era como fitar a cabeça de Medusa. Tinha a face toda serpenteada de veiazinhas roxas cujos cursos, confluências, estuários, embocaduras e deltas se multiplicavam no nariz a pique e nas bocheças sensíveis como dunas ao vento. Toda a superfície de sua pele era cheia de cicratizes de acne juvenil. De furúnculos e bexigas – que faziam de sua testa e queixo uma sucessão de montanhas e vales, uma teoria de picos, talvegues, escarpas, encostas, ravinas, erosões, gargantas, ocos de declives. Tudo isso era cor de púrpura e reluzia da seborréia. Essa cara de apoplexia contrastava seu escarlate com o negro dos vidros do pincenê colado aos olhos, impedindo que se os visse e com a brancura dos cabelos broscarrê, do bigode de escova e da dentadura imaculada – que aparecia inteira, densa, numerosa, replicada, como se fosse de duas filas como as da queixada dos jacarés – quando ele ria de gozo, aplicando a  nota má. Era bojudo de tronco, só usava fraque, tinha pernas curtas e pés, decerto, ultra-sensíveis que justificavam que todas suas botinas fossem feitas de pano, de modo que ele dava a impressão de estar sempre de galochas.”

http://www.brasil-turismo.com/rio-grande-sul/mapas-rs.htm
http://www.brasil-turismo.com/rio-grande-sul/mapas-rs.htm

Vencemos nossa batalha ((lá em cima, fácil; aqui, difícil) ao conseguir penetrar nos significados desse mapa físico esboçado pelo cultíssimo Nava (estuários, talvegues, ravinas; e broscarrê?), fazendo troça do gaúcho decerto branquelo, e caímos de sopetão, e mais uma vez, no consultório do médico com seu diagnóstico preciso.

“Hoje é que imagino que despotismo de colesterol, que fabulosa hipertensão! que magnífico coração bovino! que fantásticas sufocações! – deviam afligir as madrugadas do nosso mestre.”

Nesta passagem adiante transcrita, curta mas emblemática, minha mente alcançou o Colégio Dom Bosco de Brasília, onde fiz três anos (1965/1967) do ginasial (nome estranho pra turma de hoje). Estudavam ali, na W3 Sul, Quadras 702/902, somente meninos; as meninas, no vizinho Maria Auxiliadora, comandado por freiras. Um muro de Berlim, uma muralha da China a polarizar os dois estabelecimentos unisex (ainda existe essa palavra). Contato físico quase nenhum, a grade (verde? azul?) só ensejava olhares furtivos e audaciosas pegadas na mão, iniciativas não raro dos meninos ou de algumas meninas tidas por “mais saidinhas”. A maioria de nossos professores era de padres salesianos e alguns deles nos metiam medo a partir do momento em que entravam em classe, nós todos de uniforme e de pé para receber o pedagogo, a autoridade, que não usava anel nem era cardeal – mas nos infundia temor reverencial.

“Quando ele entrou na aula, andando sobre solas de feltro, fechado, maciço, jeito de barrica, assim feito uma calamidade silenciosa e vasta – levantamo-nos aterrados.”

Empregando outra das atualíssimas expressões ventiladas neste blog,  pode-se garantir que o Cândido ainda irá dar pano pra manga.

 

27 de março de 2016

(180)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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