Meu Velha (IV)

Sem força para escrever, socorro-me de Afonso Arinos de Melo Franco,
a respeito de quem deverei falar muito doravante, em item próprio, inaugurado nos primórdios destas anotações com o Paulo Duarte, seguido do Pedro Nava, aos quais desejo ajuntar outros da mesma estirpe. É do grande homem das Minas Gerais, nascido em Belo Horizonte, integrante de família oriunda de Paracatu e tão significativa da História do Brasil, que recolho, mantendo íntegra a ortografia da época, as palavras lavradas no segundo volume de suas memórias (“A Escalada”), em episódio de avô (pai ao quadrado) que perdera neto
de idade tenra:.

“(…) A morte trágica de Virgilinho explica em parte o desgôsto pela escrita, mesmo pela leitura; mas não o justifica totalmente. Esta emoção dorida que, semana após semana, arrasta
na torrente da minha imaginação o corpinho inerte do menino morto. Meu pensamento é como um rio que traz, sempre, para dento de mim, o vulto de Virgilinho morto sôbre as águas. (…).
A morte do pobrezinho chegou-me de chôfre, (…), pelo telefone (…) Virgilinho fôra fulminado por um choque elétrico dentro
da piscina, em casa de Maria do Carmo. O raio de sol de abril
se engolfara, na treva, no mistério.

“Êle era o mais velho, era meu afilhado. Sua admirável inteligência, sua exaltada sensibilidade, seus lindos olhos tristes
e confiantes… A atenção rigorosa com que, sentado no meu joelho, ouvia incansàvelmente as mesmas histórias que eu lhe contava, retificando os pontos em que a repetição não era exata. Sua voz rouca, de tanto que êle falava; seu riso luminoso, suas mãozinhas sempre abertas aos contacto solidário com as coisas,
os bichos; as plantas; o mundo. A esperança – não, a certeza – de que sobre êle viria pousar, tranqüilo, o olhar das velhas sombras ausentes. E a obsessão do que êle não chegou a saber, do que êle não viveu e que dá gôsto à vida? (…) Seu corpinho frágil bóia, como uma flor, sôbre as águas claras da memória. Mas ele ficou plantado, florindo dentro de mim. Seus irmãos crescerão, serão mais velhos do que êle, ficarão adultos. Para êles Virgilinho será uma sombra tênue de infância, um daqueles retratinhos tristes
de criança morta, com roupas antiquadas, que eu via em menino, nas largas molduras de veludo. Mas, dentro de mim, enquanto eu viver, êle ficará boiando sôbre as águas, e eu o tirarei do tempo interno uma vida intacta que êle viverá. Dentro de mim êle viverá sem recuos, sem receios, seguindo a linha clara e copiosa. Êle será o mais velho, sempre, e irá crescendo e vivendo
e desabrochando dentro de mim,
e vendo as formas do mundo, e entendendo as coisas belas
que não viu, ou não pôde entender, trazendo com sua inteligência, que fui dos poucos a conhecer, a palavra exata para a esperança dos que sofrem e a imagem reveladora para o gôsto dos que sentem; e compreenderá a dor dos humildes e a revolta dos abandonados; e amará a mais pura e a mais bela e por ela será amado; e sofrerá também, porque estará vivo e não morto;
e existirá intocado do mal até que eu morra; e então morrerá comigo, dentro de mim, e iremos juntos de mãos dadas, ele pequenino de nôvo; iremos juntos e êle, com sua vozinha rouca, me contará as histórias que eu lhe contava e me levará pela mão, sôbre as águas, ao encontro de Jesus.”

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24 de novembro de 2013

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mmsmarcos1953@hotmail.com.br

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