
Obsessões Musicais XXXIII
Nossa memória é um filme que vamos constantemente editando, ao sabor das conveniências presentes e dos temores futuros. A verdade, dolorosa verdade, é que nem o passado nos pertence por inteiro.
– Joao Pereira Coutinho –
Quem por desventura se interessaria em conhecer quais músicas são da minha preferência? Longe estou de figurar como influenciador, estrelinha da web, subcelebridade alpinista. Antes, não passo de um blogueiro arcaico, se é que me permitem redundância. Julgo portanto que não passo de um topetudo (essa é nova), de vez que alinho aqui, desde novembro de 2016, obsessivamente, minhas músicas prediletas.
Num rasgo de bom senso, eu havia pensado em descontinuar este tópico, iniciado em novembro de 2016, mas inativo desde março de 2024. Me enxergava nessa toada quando o melhor cronista da atualidade, o carioca de raiz lusitana Joaquim Ferreira dos Santos, achou por bem entretecer sinais de pura poesia, à altura da musa que resolvera embarcar – precocemente, digamos, porquanto na atual quadra nossos ídolos da música popular brincam e desfilam com garbo rumo aos 90 anos de idade.
Pois o Joaquim, como quem não quer nada, mas arrostando tudo, lavra uma sentida e justa homenagem a uma puta duma cantora que, vamos confessar, andou levando nos últimos tempos reprimendas dos segmentos ditos progressistas, por endireitar-se crescentemente, no mesmo diapasão, por assim observar, dos trogloditas fardados ou não que repudiam Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros artistas por motivações políticas e ideológicas.
Apreciemos alguns dos versos do poema disfarçado de crônica, desde logo com o registro do editor (olhem minha pretensão) segundo o qual PRK-Terra é alusão do poeta ao programa humorístico PRK-30, que décadas e décadas atrás passava na Rádio Mayrink Veiga e depois na Rádio Nacional .
“De leros, boleros, sambas-canções e outras delícias tristes, assim eram feitas as músicas de Nana Caymmi, a cantora que na quinta-feira desligou o microfone da PRK-Terra, agradeceu a audiência e foi cantar em outras frequências, as ondas celestiais exclusivas das grandes divas.
“Nana sofria com elegância. As letras que cantava falavam de mentiras, traições, mas ela não batia no coração para pontuar a dor de algum amor que tivesse ido embora em meio a essas rimas ruins da paixão.
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“Há muitas maneiras de a música brasileira dizer que o nosso caso está na hora de acabar, que faz um ano e meio que o nosso lar desmoronou. Nana, o tom grave que herdou do pai, uma levada operística que ganhou não sei de quem, levou esse desamparo amoroso ao sublime. Sofria moderno, quase cool. Quem inventou o amor não foi Nana, mas ela modulou uma escala própria de cantar as desilusões decorrentes.
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“Diante das ciclotimias do insensato coração, ela se autodebochava sussurrante: ‘Só louco…’.
“Não se faz mais cantora como Nana Caymmi, e eu nem falo na capacidade de juntar técnica e emoção. As anittas e pabllos da modernidade desconhecem o fracasso, a solidão, a vingança e principalmente a melancolia da chuva que cai lá fora. Todas poderosas, não conjugam o verbo sofrer em quaisquer dos seus tempos. Não fazem mais o favor antigo de gostar de alguém – e cantam a mixaria aeróbica de passar o rodo geral, a ostentação otária de beijar 20 bocas e não dizer um ‘eu te amo’, essa delícia da música brasileira substituída pelo ‘toma, toma’ e ‘senta, senta’ das novas canções.
“O tempo levou Nana Caymmi e já a vejo no grande broadcast das nuvens divinas. Está ao lado direito de Dalva e Dolores, à esquerda da enluarada Elizeth e da personalíssima Isaurinha, essas loucas dramáticas que também não inventaram o desamor, mas acalentaram suas dores quando ele bateu, e ele sempre bate, na porta da frente de todos nós.”
E me inspiro nesse desfecho para convidá-la a dar uma resposta ao tempo, podendo pedir ajuda ao Cristovão Bastos e ao vascaíno genial Aldir Blanc:
RESPOSTA AO TEMPO
Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter
Argumento
Mas fico sem jeito calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei
Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo
Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei
E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos
Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto
E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer
01/06/2025
(379)
mmsmarcos1953@hotmail.com

A História é amarela 6 (Madonna)
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