Memórias/Memorialistas (XIV)

Do privilegiado e merecido recanto onde mora no céu, o Paulo Duarte nos respondeu que iria permitir expressamente o empréstimo, para este modesto blog, de algumas das passagens de sua história de vida. Fez mais: convalidou o uso que aqui fizéramos de outros trechos e ainda autorizou novas postagens, com parcimônia, sob pena de violarmos o sagrado direito autoral.

Sem deixar de manter a inflexão no campus da USP, o memorialista vez que outra foge dos ambientes cultos, eruditos, se dispersa contudo fertilmente, até chegar à zona rural a pretexto de se deter no perfil do Tio João.

“(…) Uma tarde, foi ele visitar um vizinho que estava doente, ao lado do caminho que ia para Ribeirão Preto, morador num sítio distante menos de meia légua. Por isso saiu sozinho na companhia inseparável do Tufão, um cachorro rajado, o preferido de uma matilha de cerca de vinte cães, quase todos descendentes da cachorrada de um tio, o capitão Mata Onça, famoso em toda região, cujo nome verdadeiro era Gabriel Junqueira, grande caçador, valente e atirado, falecido em 1873, depois de haver abatido cerca de cem onças, daí o apelido, deixando uma fazenda de 15 mil alqueires. Foi o centro de todas as atividades sociais da região compreendidas em terras hoje pertencentes aos Municípios de S. Simão e Ribeirão Preto.

“Esse já longínquo tio-bisavô, tio João possuía também uma matilha de caça de mais de vinte cachorros, mas entre todos o predileto era esse Tufão, rajado, jaguaraíva escarrado (hoje se diria vira-lata) de imensa riqueza étnica, como acontece com todos os grandes grupos miscigenados, embora tenham opinião contrária os racistas de meia-tijela, como todos os racistas, ricos de soberba mas sem riqueza zoológica, principalmente tratando-se de zoologia humana. Todos esses cães a cargo de um afamado “cachorreiro”, função instituída pelos Junqueiras, todos, menos o Tufão, que este dormia e comia na casa-grande, ao lado do patrão de quem não desgrudava.

“Pois o nosso Junqueira permanecera na prosa mais tempo do que desejava, de modo que anoitecia quando deixou a casa do amigo e embrenhou-se de novo pelo pedaço da floresta que o caminho de Ribeirão Preto cortava de lés a lés. A noite os encontrou ainda dentro da mata, embora já muito próximo de casa. Foi quando o Tufão se arrepiou todo e pôs-se de guarda, rosnando. Uns olhos fosforescentes apareceram e atacaram. A luta no escuro foi feroz. De um lado, a onça faminta, do outro um cachorro rajado e um Junqueira. Em dado momento, os dois canos da garrucha do último roncaram ao mesmo tempo. O Tufão jazia seriamente ferido. Ferido também, mas em melhor situação, o Junqueira pegou o amigo nos dois braços.

Onca

“Três quilômetros de desespero até chegar em casa, exausto. O rijo Junqueira tinto de sangue, sangue de homem e sangue de cachorro. Para um Junqueira, sangue de parente próximo. Ajudado por pessoas da família, arrastou-se até o quarto do casal, em cuja cama Tufão foi deitado. Só aí se verificou o estrago feito. O patrão com o ombro lanhado, o peito e as mãos em sangue, o cachorro em mísero estado. O rabo inteiro e uma orelha ficaram na boca da onça, um olho vasado, por pouco, a passagem de uma garra não efetivou uma laparotomia no ventre do cachorro que estrebuchava. Mas a arnica, a pinga canforada, juntas para fazer o que pudesse. Uma semana de repouso na cama do patrão cuidou do resto… E Tufão pôs-se de pé contente da vida, mas sem uma orelha, sem o rabo, decepado tão rente que nem podia esconder o que devia e um olho de menos, parecia um lobisomem acuado por um esconjuro. Todas as noites o ferido passara lambido pelos olhos do patrão que fazia promessa a N. S. de Lourdes, procurava descobrir como premiar o amigo fiel e corajoso. Uma madrugada, quando este demonstrava haver conservado pelo menos a vida, só então veio uma ideia digna daquele grande sacrfício: Uma viagem à Europa! Sim, só mesmo uma viagem à Europa seria recompensa digna ao heróico sacrificado. Foi assim que os três embarcaram em Santos num vapor francês. O comissário do navio não consentiu que aquele “gueule-cassée de soixante dix” pudesse ficar na cabina do dono, mas arranjou um canto em qualquer parte em que o Tufão pudesse dormir confortavelmente. Durante o dia ele vinha para cima dormitar ao pé do dono e chegou até a brincar com as crianças a bordo que se habituaram com aquela assombração de cachorro. É que Tufão era um bicho bem-humorado. Só perdia a calma quando o dono era ameaçado. A velha onça das matas de Ribeirão tivera a prova disso…”

 

03 de agosto de 2014

(079)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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