Dr. Farani (V)
Agarrei rapidinho a grana para o cinema. As cédulas, todavia, foram parar numa caixa registradora, naquela gavetinha destravada e automaticamente aberta quando e se uma das teclas coloridas é acionada pelo dono do botequim. O nome dele? Edson, também a denominação consignada no letreiro do estabelecimento. Muitos e muitos anos depois, esse simpático proprietário (já falecido), pai de dois homenzarrões como ele, veio a namorar, o mundo é pequeno, minha tia materna Celia, a caçula do batalhão de sete mulheres que a vovó Coralia pusera neste vale de sangue, suor e lágrimas (You’ve made me so very happy).
Com quatorze anos, não entrei nessa fatídica loja do comércio da 306 Sul para de fato comprar chocolates ou balas. Nem em cumprimento à costumeira ordem do meu pai (originalmente, o financiador do ingresso para a sétima arte) no sentido de buscar cervejas para ele – pasmem, não era proibido a menores fazê-lo.
Maço de cigarros no bolso, eu, o pseudo-adulto, descia o degrau alto para sair do bar e o chão firme no plano inferior não chegava nunca. A primeira fez tchan… não houve a segunda, terminou ali, abrupta e tragicamente, o anúncio de gilete. De pavor, do mais absoluto pavor, a cara do meu cúmplice, o primo-irmão Eduardo (não nos percamos pelo nome), menino generoso adorado pela família e por todos os amigos e amigas daquela Brasília ingênua. (Neste sinistro 2014, o companheiro desse meu infortúnio embarcou, aos sessenta anos de idade, vitimado por um câncer invasivo e devastador. Saudades).
Minha expressão facial também era assustadora. Ainda sem a dor, que viria impiedosa segundos depois, lobriguei cinco centímetros da tíbia esquerda que transpareciam num pano de fundo gelidamente branco. Ignoro até hoje a maneira pela qual o Eduardo reunira forças (as provindas do desespero?) para tirar a perna descarnada do saci moreno, espremida no vão da grelha com barras arrebentadas, de uma das quais sobressaía um pitoco enferrujado, virado um pouco para cima, perfuro-contundente, que deixou o fulcro da canela fina exposto à curiosidade dos transeuntes, calça Lee e meia soquete a essa altura já em início do processo de tingimento de vermelho.
O parente querido botou o acidentado em seu colo e se abalou para o Hospital Distrital (não vou mais dizer aqui que era o atual Hospital de Base), onde o Dr. Farani operaria no segundo tempo do jogo.
02 de setembro de 2014
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