Memórias/Memorialistas (LI)

Toda água tem memória, sempre tentará voltar
para o lugar de onde veio.
(Toni Morrison)

Há críticos que consideram a memorialística gênero menos nobre da literatura; os mais radicais não a têm sequer como digna de figurar naquilo que antigamente chamávamos de livro e púnhamos na estante.

Não sabem o que dizem, muito menos o que escrevem. Misericórdia com eles.

“… (Disse-lhes Pilatos: Que é a verdade? – João: XVIII-38) É com essa pergunta que entro nessa fase de minhas memórias, fase tão irreal e mágica e adolescente como se tivesse sido inventada e não vivida. Se eu fosse historiador, tudo se resolveria. Se ficcionista, também. A questão é que o memorialista é forma anfíbia dos dois e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação.”

Desconhecem ou ignoram que o Pedro Nava é isso aí, amálgama, empolgando-nos com alguma dose de ficção da realidade sem detrimento do papel de historiador rigoroso.

“E como interpretar? o acontecido, o vivido, o FATO – já que ele, verdadeiro ou falso, visão palpável ou só boato tem importância igual – seja um, seja outro. Porque sua relevância é extrínseca e depende do impacto psicológico que provoca. Essa emoção, desprezível para o historiador, é tudo para o memorialista cujo material criador pode, pois, sair do zero. Mentira? Ilusão? Nada disso – verdade. Minha verdade, diferente de todas as verdades.

Isso, digamos, se ficarmos só no terreno do presente contado num já futuro (o fugaz presente de agora) que o deforma na medida que também acaba. Porque intervém o tempo, o inexorável tempo. Se o espaço é infinito, não pode ser dividido em distâncias. Se o tempo é função das divisões do espaço – não existe senão convencionalmente. O que chamamos Tempo – passado, presente, mesmo sua dimensão futura – é apenas fabricação da memória. Só existem enquanto duramos ou quando os transmitimos com pobres meios de conhecimento alheio. Serve assim? Então, posso contar. Se não serve… Ainda se o que vai aqui fosse escrito por mim… O diabo é que apenas repito. Escrevem – os outros. Você é duro, você é cruel, você é pouco veraz, Seu Nava. Nada disso, tetrarca. Eu só copio…”

Felizes são os milhares de pessoas (como eu) que, nos anos 1970/1980, entravam proustianamente nas livrarias – ou melhor, nas centrais de reprografia. Dali saíam, se assim posso me expressar, sobraçando Baú de ossosBalão CativoChão de Ferro (de onde extraio os trechos abaixo), Beira MarGalo das Trevas ou O Círio perfeito (me falta o Cera das Almas – póstumo, incompleto; vou resgatar) e em seguida corriam para a casa, para as bibliotecas, para os gramados ou bancos das praças a fim de poder delirar com os “filmes” (documentários?) protagonizados pelo Nava, o homem que copiava.

O médico mineiro, o memorialista maior deveria estar aqui conosco, nestes tempos de censura, de fundamentalismo, de oportunistas cafajestes – que nos assombram exigindo cancelamento de exposições de arte (não era somente caso de classificação de faixa etária? 16 anos por exemplo?), formalizando pela via judicial pedido de retirada de peça de teatro, articulando boicote a patrocinador enfim acovardado.

Reentronizemos o escritor das Minas Gerais, atualizando-se comentário irretorquível.

“Os duros, os cruéis, os mendazes são os que bombardearam Guernica. Não Picasso que a pintou. Conhecem o caso? É o de aviadores alemães horrorizados com a tela e que perguntaram ao grande Pablo como é que ele podia ter criado coisa tão hedionda. Quem? eu?  pintei nada. Isto foi feito pelos senhores à hora que deram nas suas alavancas e deixaram cair a chuva de bombas sobre a cidade deitada e aberta embaixo.”

Parte do quadro "Guernica", de Pablo Piscasso Parte do quadro "Guernica", de Pablo Piscasso

Iniciei timidamente me abeberando e termino abeberado.

“Podemos acrescentar mais. Tudo se deforma, altera, muda, continuando a mesma coisa, quando passa de homem a homem em conversa, em leitura. É como a água sempre água, mas que é triangular, cilíndrica, redonda, quadrada, espiralada, trapezoidal e multicor conforme vá do jarro branco à garrafa verde, ao copo amarelo, ao cálice incolor, à concha opalescente.”

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06/10/2017
(262)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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