Memórias/Memorialistas (XVI)

Não dá mesmo para largar o tio Constantino assim, sem mais nem menos. Não dá porque, a pretexto de esquadrinhá-lo nestas transcrições, serei  free-rider  em face do grupo de leitores que passarão a conhecer em profundidade os traços da personalidade do Pedro Nava.

Com efeito, o escritor chacoalha o tio, desconstruindo-o, inclusive quando analisa o “lar” do velho e da esposa. Nessa singradura, ficamos todos nós sabendo, pelas lembranças em geral do memorialista e em particular por esse tomo (Baú de Ossos), que o garoto inofensivo iria se vingar um dia de muitos daqueles injuriadores, parentes ou não. Para tanto, traçaria fidedignamente o perfil de cada um, malgrado (o termo vale per se) com ênfase arrepiante na faceta, digamos, não agradável dos personagens, juntando palavras formadoras de literatura fenomenal, que é o que mais vai nos interessar de perto.

Desconfio que, ao ler tais memórias, lá do céu (ou do inferno), onde já deviam estar aboletados havia muito tempo, o Constantino/Paletta/Bicanca e sua mulher não suportaram a fúria, as diatribes do Nava e… sucumbiram em definitivo.

http://juventudecaju.blogspot.com.br/2012/05/o-menino-dos-olhos-tristes.html
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A casa:

“(…) Nunca entrei na casa desses tios sem mal-estar. Tudo ali estava impregnado da vida que eles viviam: a de dois gatos cozidos dentro de um saco de couro. A ala de entrada, com seus dois renques de espinheiro, era agressiva; triste, o jardim de tanques secos e pássaros calados; os pórticos da varanda, no alto, faziam como que cara nauseada e hostil. Vi a casa postiçamente festiva uma vez, com músicas, danças e gente de casaca. Por ocasião do casamento de minha prima Estela com um irmão de tio Meton, chamado Antônio Meton de Alencar. Lembro bem sua cara proustiana parecida com a de Boni de Castellane. O mesmo ar amímico de boneca de louça e o mesmo bigode feito uma poeira de ouro sobre a boca enfática. Lembro depois da casa desamparada quando lá nos hospedamos, a pedido do Paletta, para meu Pai assistir dia e noite uma de suas filhas com uma infecção puerperal. Meu pai deixou o próprio consultório, minha Mãe foi servir de enfermeira, a doente salvou-se e ainda tivemos de acompanhar a convalescença no sítio do Paletta, na estação da Creosotagem, logo adiante de Mariano Procópio. Tenho ideia de meu Pai, todas as manhãs dessa época, apanhando turvações numa água de banho ou de lavagem, colhia as nuvens com um pequeno arame recurvo e estendia-as sobre um paralelograma de vidro. Vim conhecer esses objetos – alça de platina e lâminas – no meu curso médico.”

O trauma do menino:

“Guardo da creosotagem a assustada lembrança da carreira que me deu um bezerro de que escapei cerca abaixo. Guardei também as gargalhadas divertidas do Paletta e do Antonio com a situação e do nenhum gesto esboçado em meu socorro. Eu tinha seis para sete anos, mas nascera com o dom de observar e guardar. Como adulto, bastante tenho desculpado as bordoadas e safanões que tenho levado e vou levando. Às vezes reajo e ataco também. De outras, não, por nojo das canalhices e dos canalhas, por ‘tédio à controvérsia…’ Vou perdoando, vou. Já os agravos feitos ao menino desarmado que fui…”

 

12 de setembro de 2014

(093)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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