Obsessões musicais (IX)

Uma leve impressão: o termo narrativa, encontrável em dez de cada dez textos jornalísticos, está saindo de moda. A substituição, no tocante a uso frequente, é pelo entrega.

Nada de associar entrega a delação (premiada), procedimento em voga nas salas da polícia federal, do ministério público, através do qual amigos e amigas lançam na fogueira ex-amigos e ex-amigas de jornadas heterodoxas. Nem conectar a palavra ao mister dos motoboys (e motogirls), que se esfalfam na selvageria do trânsito para fazer chegar às mãos dos destinatários e destinatárias toda e qualquer mercadoria que caiba naquelas malas, naqueles bagageiros, exceto as que fruto de corrupção pois não se tem notícia de que hajam participado de tal espécie de falcatrua. Categoria de valor (não pode chutar espelho retrovisor lateral de carro), aceite meu preito.

Vemos o governo fechando coalizões com partidos políticos que podem “entregar” votos suficientes para imprimir essa ou aquela mudança legislativa; clubes de futebol contratando técnicos que podem “entregar” times prontos para erguer taças de campeonatos regionais ou nacional. Por aí vai. Enquanto eu fico sem saber o que “entregar” agora para este blog quase nada lido.

foto: Luciano Sartoryi

Reajo. Para mitigar a falta de criatividade, me arrimo numa das atrações do Teatro Mapati. Se minha memória não me trai, faz três anos que, sempre no último fim de semana do mês, é apresentada em nosso espaço cultural a peça Vinicius, sob direção do também ator (e que ator) Abaetê Queiroz. O espetáculo se desenrola nos três pavimentos, com o público entusiasmado acompanhando cada cena movido literalmente a doses gratuitas de scoth e linguiçinha calabresa.

Da magistral obra do poetinha, pinço uma música:

Não me lembro se integra a trilha da peça no Mapati, por mim assistida várias vezes que, malgrado o título, não tem coisa alguma de rotina. Ou tem – noticiário tenebroso, crianças aprontando (Herodes, uma lição poética), sonho de ganhar na loteria. E sobretudo malho nos arrependidos, se foi pra desfazer, por que é que fez?

Cotidiano Nº 2

Há dias que eu não sei o que me passa 
Eu abro o meu Neruda e apago o sol
Misturo poesia com cachaça
E acabo discutindo futebol

Mas não tem nada, não
Tenho o meu violão

Acordo de manhã, pão com manteiga
E muito, muito sangue no jornal
Mas quando a criançada toda chega
Eu chego a achar Herodes natural

Mas não tem nada, não
Tenho o meu violão

Discuto a loteca com a patroa
Quem sabe nosso dia vai chegar
E rio porque rico ri à toa
Também não custa nada imaginar

Mas não tem nada, não
Tenho o meu violão

Aos sábados em casa tomo um porre
E sonho soluções fenomenais
Mas quando o sono vem e a noite morre
O dia conta histórias sempre iguais

Mas não tem nada, não
Tenho o meu violão

Às vezes quero crer mas não consigo
É tudo uma total insensatez
Aí pergunto a Deus: escute, amigo
Se foi pra desfazer, por que é que fez?

Mas não tem nada, não
Tenho o meu violão

– Vinicius de Moraes –

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29/11/2017

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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