Quem cuidará de nossos pais? (IV)
Os seres humanos, os masoquistas incluídos, relutam em tomar conhecimento de assuntos que resvalem na melancolia, que atualizem dramas ou que sejam essencialmente trágicos. Quem se ocupa de abordá-los, é tachado de depressivo e, mais grave, de chato mesmo. Se fala de doenças, ainda que profissionalmente (por exemplo, o Dr. Drauzio Varella), torna-se numa pessoa incômoda, a merecer o desterro.
A temática destas quatro postagens é penosa, é dura de enfrentamento e pode me jogar no rol dos insuportáveis. Alguns se livram do implacável veredicto alicerçados apenas no estilo da escrita, o que infelizmente não é o meu caso – sem falsa modéstia.
Em que pese a essa situação desfavorável, prossigo com a reportagem do livro da Marleth (já estou íntimo), que arrola depoimentos singelos mas poéticos, como este que, transcrito na íntegra, é prestado pela única cuidadora candanga apresentada na obra (Albiara Silva, 33 anos, hoje uma quarentona, moradora do Guará – para quem não sabe ou não conhece, trata-se de uma das regiões administrativas – um bairro, digamos – do Distrito Federal):

“Minha mãe começou a apresentar sintomas de Alzheimer quando eu tinha 15 anos. Como eu era muito nova, é difícil contar se antes a gente se dava bem ou não. Ela era de brigar muito, fazer escândalos. Terminei o segundo grau com dificuldade porque às vezes não a encontrava em casa quando voltava da escola. Ela saía e se perdia. Eu tinha que ir procurar. Cheguei a fugir de casa. Hoje meus irmãos dizem que eu fui a causa da doença dela. Também dizem que eu tenho que cuidar dela porque sou solteira.
“Só há seis anos os médicos me disseram o nome da doença da minha mãe. Nunca tinha ouvido falar de Alzheimer! Agora ele é totalmente dependente. Não fala, não anda. Eu cuido dela e da casa. Fico tão cansada que às vezes não consigo comer e sinto dor em todo o corpo. Como somos só nós duas, quando saio deixo minha mãe com Deus. Tem companhia melhor?
“Não tenho dinheiro para contratar uma faxineira, mas tento manter a casa bem limpa porque os vizinhos falam muito da gente. As pessoas cobram que eu devia fazer isso e aquilo: levar minha mãe para passear de cadeira de rodas, arranjar um emprego…
“Me sustento com a pensão que meu pai deixou. Ele era funcionário público. Minha mãe era copeira e tem uma pensão de um salário mínimo. Com o dinheiro dela não dá para pagar as fraldas, os remédios e o táxi para ir ao médico, Passei fome porque a comida que consegjia comprar só dava para ela. Como os outros filhos não queriam ajudar, fui cobrar na Justiça. Três já estão pagando. As três pensões juntas dão R$ 400,00.
“Aproveito uns cursos gratuitos para aprender alguma coisa. Agora estou fazendo um curso de francês e outro que ensina a gente a entrar no mercado de trabalho. Mas não tenho coragem de deixar outra pessoa cuidar da minha mãe. Só uma vez paguei uma vizinha para ficar com ela. A mulher não limpava minha mãe direito e ela teve feridas. Comigo ela está sempre linda, bem cuidada. Coloco o despertador para me acordar durante a noite para virar a minha mãe de lado na cama. Ela nunca teve escaras.
“Eu digo a Deus: ‘Senhor, permita que eu sinta o que a minha mãe está sentindo para eu entender o que ela quer dizer.’ Vi lágrimas de dor caindo dos olhos dela sem saber o que estava errado. Passei maus momentos tentando conseguir que um médico desse atenção pra ela no pronto-socorro dos hospitais.
“Eu acho que não estou mais dando conta de cuidar de minha mãe. Tive depressão mais de uma vez. Cheguei a planejar suicídio e a sair gritando pela casa. Queria ter alguém para fazer a limpeza para eu poder ficar só com ela na cama e conversar. Leio as minhas lições de francês pra ela. Leio livros. O médico diz que ela não entende, mas eu acho que entende. Eu amo minha mãe.”
23 de novembro de 2014
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