Dr. Farani (VI)

Para deflagração do procedimento de sutura, fez-se necessário esticar a pele, puxando derme, epiderme, toda a crosta para baixo, na direção do pé, de sorte (?) a cerrar aquela tela onde se descortinava a atração principal, o mencionado pedaço de tíbia amarelecido, um dos pilares de sustentação do bípede. O plantonista dera quinze ou vinte pontos, até hoje não sei exatamente quantos foram. Tanto que o homem de branco acabou a função, a perna esquerda saiu do pronto-socorro, marcada com o “V” de vaca, maiúsculo mesmo pela extensão dos afluentes.

http://www.zazzle.com.br/letra+v+convites
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Com uma das pernas dobrada, o garoto entrou pulando no elevador da última prumada do bloco C, subiu os seis andares e abriu a porta do apartamento 606 pê da vida com a recomendação do médico bimbalhando no ouvido: resguardo de no mínimo noventa dias, agendando-se a retirada dos pontos para a semana seguinte – se tudo corresse bem.

Tempo passando, linha de costura não mais havia, e o vértice do machucado não se atualizava, ponto de intersecção não configurado. Via-se ali uma fenda teimosa, nada de cicatrização. Convencido de que o estado de saúde do filho sinalizava preocupações (que cor preta era aquela na extremidade baixa da ferida?), meu pai resolveu agir e procurar ajuda clínica, antes que fosse tarde.

O velho era da Fazenda. Por representar, em Brasília, o diretor de pessoal, conhecia muita gente daqui pois o financeiro do ministério, a tesouraria, pagava buroca de tudo que era lado, acho até que remunerando quem não figurava diretamente no quadro, beneficiários talvez de lícitos extra-folhas rodados periodicamente. Inúmeros jornalistas (inclusive da coluna social), relações públicas (hoje chamam pomposamente de gestores de comunicação), médicos, enfermeiros, dentistas, entre outros profissionais, sabiam daquele homem que, de salário não expressivo (mesmo acrescido de dobradinha), era o dono do dinheiro, digamos assim.

Em qualquer lugar, meu pai era reconhecido e festejado pelos presentes, não tivesse sido ele um cara legal com os colegas de trabalho, comunicativo e, no bom sentido, sacana paca.

Não fora diferente naquele dia, dois meses da pisada em falso, quando Bibo-Pai e Bob-Filho chegaram ao ambulatório do Hospital Distrital. Fala com um aqui, fala com outro acolá e o Bibo avista no final do corredor um médico do seu ciclo de amizades. Depois dos cumprimentos (tapinhas nas costas e gargalhadas, “Silêncio”, pede a enfermeira da gravura na parede), ele suplica ao doutor para que examine, com urgência, o filho estropiado.

Ao futucar a perna do petiz deitado na maca, a expressão do Dr. Farani (pai de duas filhas e de dois filhos, o cinéfilo, xará meu, e o da ginástica, Ricardo) revelava preocupações e algum desalento. “Lelio, isso é gangrena, e das brabas. Há riscos de amputação” Meu pai quase desfaleceu. Não desanimemos, há solução porquanto, à pergunta feita (“Seu filho é macho?”) e resposta afirmativa dada imediatamente (por conta dele, não fui consultado), o servidor do HDB se convolou em metaleiro e, já de luva, mexeu em todos os instrumentos de ferro esterelizados, tirando da bacia gaze, pinça enorme e tesoura de jardineiro.

“Segura na mão do menino”, ordenou o amigo do meu pai e de quem eu me tornaria eterno devedor. Com efeito, ninguém cogitava em anestesia local, que não pegaria, era ineficaz em regiões do corpo humano sem circulação e tomadas pela gangrena. A pinça na mão esquerda foi introduzida naquele buraquinho intumescido a fim de suspender pele/carnes apodrecidas como se ressalta uma camada inteira de asfalto, bye-bye  pontos levados no dia do acidente. Formada aquela onda que nem um Gabriel Medina pegaria, meu “carrasco” esticou o braço direito, apanhou a tesoura e, com a mão firme, retalhou a protuberância, ficando a esperar algo que só ele sabia do que se tratava.

http://www.lookfordiagnosis.com/mesh_info.php?term=Ondas+de+Mar%C3%A9&lang=3
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Súbito, uma leve câimbra deu de fustigar a canela, lagarto acordando, coceira, metrô saindo do túnel e chegando à estação. Veio a tsunami, borbulhas que não eram de amor (obrigado, Fagner), água negra que não era petróleo, sujando todo o lençol. Bala na agulha, tal um espermatozóide vitorioso pronto para vingar em face dos demais, o sangue bom volta a passear livremente por veias e artérias anunciando que estava tudo dominado. Em termos, na medida em que não se podia coser o entorno daquela cavidade – agora, sim, tínhamos o retrato perfeito da vaca na canela -, não se podia fechá-la numa etapa apenas. A terapia consistiu em cobri-la, paulatinamente, a poder de curativos diários e sistemáticos com aplicação tópica da milagrosa, restauradora pomada Furacin. Três meses depois, eu retornava aos campos de pelada, chutando com as duas, embora meio receoso na hora das divididas.

A medicina bem exercida é das coisas mais bonitas do nosso cotidiano. O que teria levado o Dr. Jose Farani, excelente profissional, a pendurar o jaleco no cabideiro, virar empresário em ramo distinto das curas e fundar a Academia de Tênis?

 

04 de setembro de 2015

(090)

mmsmarcos1953@hotmail.com.br

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