Memórias/Memorialistas (XLIII)

Muitas vezes pressinto que a vida está prestes a começar,
e percebo que está quase tudo no fim.

(Oliver Sacks)

Como falar de algo que não seja a votação de hoje na Câmara dos Deputados?

Malgrado relevantíssima, tentarei fugir dela, abordagem monotemática. O comentário político talvez seja feito brevemente, na retomada da série aqui iniciada meses atrás, Sociologuês, quatro postagens já lançadas.

Pauto-me agora sem compromisso com a metáfora e a ironia. A ressalva não é gratuita pois estou me despedindo temporariamente do Pedro Nava para novo encontro com o Afonso Arinos, da Banda de música da UDN (atualíssima. Mas quase ninguém sabe do que se trata).

Enveredo (o termo é apropriado, vejam no parágrafo a seguir) pela releitura do vol. 3, intitulado Planalto.

http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-732261091-planalto-afonso-arinos-de-melo-franco-autografado-_JM
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-732261091-planalto-afonso-arinos-de-melo-franco-autografado-_JM

No qual, interpostas na Nota da Editora, encontram-se referências ao memorialista chanceler feitas por Guimarães Rosa quando tomou posse na Academia Brasileira de Letras (grifos do original):

“… Demais que vindo-me o bom modo de vosso  agasalho pela palavra de um a mim bem próximo, admirado e querido, malungo, autorizado. Afonso Arinos de Melo Franco – : capaz para pretender-se ‘mineiro, totalmente’, por estirpe e por espécie, ‘das Gerais e dos Gerais’; idôneo de declarar tudo o que sente de mais espontâneo e natural no seu espírito ‘tende a considerar intelectualmente e mesmo literàriamente a vida’; autor de A Alma do Tempo, que fundo releio, para alongamento e consôlo, um dos livros maiores do pensar e sentir brasileiros; originário desse Paracatu – grande e memoriosa entre chapadões sertões –, e cuja estranha notícia, trazida por vaqueiros, boiadeiros, tropeiros, desde a meninice enriquecia-me a imaginação, qual outrotanta maravilhosa Tombuctu, a depois do Saara, sobrenomeada ‘a Raina das Areias’.”  

Devolvo a palavra ao politico mineiro nas suas considerações acerca dos sessenta anos que então completava.

“Transpostos, há um mês, os sessenta novembros, sinto que os cabelos brancos, a ligeira insegurança no andar, a menor resistência ao esfôrço, denunciam a discreta chegada do declínio físico, daqui por diante meu companheiro de viagem, pelo resto do caminho. Companheiro cada vez mais assíduo, mais próximo, implacável na sua presença progressiva e confidencial.

“Porém a nossa sensibilidade, emoção e inteligência resistem mais ao desgaste da vida que o invólucro físico. Talvez porque cresçam e se apurem mais demoradamente que as do corpo, as faculdades do espírito, modeladas por lento amadurecimento, permanecessem intocadas, ainda quando a velhice inicia a sua vagarosa obra de destruição.”

O que dizer daqueles e daquelas que, a pretexo de mitigar as agruras do ingresso na velhice, cuidaram em batizar essa fase de “Melhor idade”?

“Penso que a minha idade atual constitui a fase representativa dêste constraste entre o vigor físico, que se afasta, e a fôrça da razão e do sentimento, que se aprimoram. É bem o crepúsculo, naquele momento incomparável, em que as sombras que descem não apagam, senão que dão mais doçura e colorido ao clarão terminal do dia.”

O  nosso Afonso Arinos desenha com tinta pesada e escura a situação  de quem, idade avançada, chega à última quadra da vida. São as observações iniciais que nos levam a uma impressão enganosa da pretensão do autor. À medida que transpomos os parágrafos, vemos um conformismo, uma impotência que no entanto gradativamente vão evoluindo para perspectivas novas, reveladoras, profícuas, um estágio por outras formas privilegiado da existência.

“Em mim, o que poderia ter sido flama vai se transformando em um pouco de luz; fraca luz, sem dúvida, luz bruxuleante e pobre, mas que serve, ao menos, para clarear meus passos de alma. Nunca, como agora, ecoaram, dentro de mim, as queixas e alegrias do mundo; as formas da natureza; as criações abstratas do gênio. Nunca, como agora, senti tão pròximamente o riso das crianças, a esperança dos desamparados, a grandeza dos gestos simples, o infinito que há no amor. A própria imagem de Deus como que se revela melhor à superfície tranqüila da inteligência vivida do que ao tumulto do espírito em ascensão. Assim o céu se reflete nas lagunas, mas não no oceano.”

 

17 de abril de 2016

(183)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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