Anjos de Barro (III)

Minha admiração pelo livro deve-se não só ao prefácio, cujos principais trechos (todos são principais e dignos de menção) ora retomo. Possuo, digamos, laços familiares com uma das personagens.

 “(…) A mãe sofria humilhação pública (coitada! pobrezinha! Que purgatório!) por ter colocado no mundo três deficientes. Na falta do dinheiro, procurava atrair os internos da Santa Casa para o seu drama, oferecendo o que tinha em casa: um delicioso angu com quiabo e biscoitos de polvilho (…).

http://compauta.com.br/cartunista-henfil-faria-70-anos-hoje-relembre-sua-historia/
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“Sangue de barata. E como dói. Às vezes nem a morfina consegue cortar o ciclo da dor. Um perigo: o ácido acetilsalicílico (aspirina, melhoral, cibalena, alka-seltzer, sonrisal, etc) que provoca mais sangramento. A ansiedade é o perigo número dois. O Natal e o aniversário são datas que o hemofílico comemora com algum tipo de derrame. Era comum eu sair do Maracanã, depois de uma partida nervosa do Flamengo, com um dos braços inchados. E, se a mulher é quem transmite, o hemofílico parece ter também a sua menstruação. Tenho observado que as fases da Lua coincidem com as crises. Lua cheia, joelho cheio. Sem contar os efeitos colaterais. Na escola eu sempre ia mal. Tomei seis bombas entre a 1.ª e 3.ª séries ginasiais! Não conseguia prestar atenção nas aulas e nem me concentrar nos livros e contas. A família via tudo como rebeldia, malandragem ou subversão da ordem. Hoje eu sei que tudo era fruto de uma anemia crônica. Óbvio.

“Sangue de barata. O preconceito faz com que muitos pensem em eutanásia preventiva: melhor evitar casar com hemofílico. A família da primeira namorada vetou o nosso namoro, porque eu era sifilítico! Já outra namorada, namoro terminado por mim, descobriu que estava grávida e resolveu ter o filho para provocar a reunião. Só sei que estava determinada e decidida a ter um filho nosso. Porém, quando soube que eu era hemofílico, fez o aborto no dia seguinte. E no trabalho? Conto só um caso. Eu já era conhecido como o Henfil dos Fradinhos e dos personagens de futebol quando fui chamado para trabalhar num dos grande jornais do país. Seu ex-editor é muito conhecido atualmente pelo seu enérgico discurso pelas liberdades. Pois bem, a pedido dele, tive que assinar uma declaração desobrigando o jornal de qualquer assistência médica à minha hemofilia. Só assim pude ser contratado e começar a desenhar. Nenhum seguro à vida de um sangue de barata.

“Sangue de barata é a PQP! Ao duplo sentido da provocação da garotada da rua eu respondia com socos e pontapés. Andava de bicicleta e jogava futebol, era um temido beque daqueles que largam a bola e vão na perna do adversário.

Chegava em casa e apanhava de chinelo, cinto e escova de cabelo, como todo mundo. Um dia, pulei de um barranco de três metros de altura em cima de um monte de palha, só para provar à molecada do bairro proletário de Santa Efigênia que eu podia.

Podia levar chutes e pancadas à vontade. Apenas tinha que ficar depois friccionando o local durante horas, uma intuição que evitava surpreendentemente os hematomas. Aos poucos, sempre testando fórmulas de negar a existência da hemofilia (sou ateu!), passei também a movimentar centenas de vezes a articulação atingida. A bicicleta deixou de ser apenas um veículo de prazer para virar ginástica de resistência e lubrificação.

Para suportar a monotonia dos exercícios repetitivos, me imaginava um atleta se preparando para a Olimpíada. Dava elasticidade aos músculos e à imaginação (…). Guerra é guerra era a frase predileta, com tambores ao fundo. Em caso de derrame nas articulações, não tomava a transfusão, sinal de derrota. Um dia, Millôr Fernandes comentou: o Henfil não come mel, come abelha. Pois com o joelho inchado, deixava de tomar o lotação e ia a pé para o trabalho, 10 a 15 longos quarteirões. Vencer a dor. Em geral o derrame regredia, desmoralizado.”

 

25 de fevereiro de 2014

(050)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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