Ao querido Léo

Brasília, 24 de março de 2014

Venho aqui hoje para tentar me abrir um pouquinho, pois queria “externalizar” minha gratidão por ter convivido com um menino iluminado que foi o meu amigo e companheiro de grupo: Leonardo Góis.

Conheci o Léo em 2007, lá, no Teatro Mapati, eu então nova naquele espaço mágico e ele um aluno meio desajeitado que tinha o grande sonho de ser ator.

Vez em quando ele sumia das aulas, o que causava nos professores chateação. Mas depois saberíamos que em algumas oportunidades isso acontecia por causa de uma doença, a anemia falciforme, e também a luta árdua por uma vida melhor, a única alternativa era trabalhar para sobreviver.

Os anos foram se passando e o Léo fazia alguns trabalhos esporádicos conosco, monitor em colônia de férias, ‘’brejeirices’’ (participações) em alguns espetáculos do grupo Mapati, até que em 2010, após passarmos num certame público do Banco da Amazônia, surgiu a remontagem do espetáculo Os Saltimbancos Músicos de Grimm. Tereza Padilha convida algumas pessoas e entre elas o Léo para participar da peça. Eu sempre tentei respeitar os papéis num grupo, mas para mim a Tereza, enquanto diretora, chamar o Léo para um projeto tão importante para o Mapati, ele sendo inexperiente, era um risco. Afinal de contas, estávamos prestes a cumprir uma temporada relativamente longa na região norte do Brasil. Mas por que eu fiquei com receio de o Léo conduzir o espetáculo?

Primeiramente, porque pensava que o personagem do Jumento era o grande destaque de Os Saltimbancos, era o maestro; quando o maestro titubeia, aí já viu, né?

foto: Cia. Mapati
foto: Cia. Mapati

Nunca me esqueço: estávamos numa reunião conversando sobre isso, eu fiz esse comentário para o grupo, inclusive a ele. Foi quando a Tereza disse: “Ele vai conseguir, não se preocupe.” Depois dessa fala, eu começava a entender também o que é o olho clínico de um diretor de teatro, há uma atmosfera que cerca esses profissionais, principalmente uma intuição aguçadíssima.

Eu lembro do olhar do Léo naquele dia. No fundo ele tinha medo de não conseguir, mas ao mesmo tempo um desejo de mostrar o grande ator que estava dentro de si. Lembro desse olhar até hoje e vira e mexe lembrávamos daquele episódio rindo, pois nascia ali uma grande parceria e amizade.

A temporada no estado do Pará foi exitosa, apesar do custo financeiro amazônico, mas o Léo aspirante entrava ali definitivamente em nossas vidas.

Para o Léo não tinha tempo ruim, ele era de teatro (quem é de teatro sabe o que estou falando). Correndo para ajudar a carregar cenário, ajudando na maquiagem dos colegas, ele mesmo desorganizado com o seu material precário e incompleto, até levar uma bronca de Tereza por causa disso. O corretivo levou-o a comprar sua maleta hi-tech na feira do Paraguai, todo orgulhoso dos pancakes, lápis e demais itens indispensáveis a um ator.

foto: Cia. Mapati
foto: Cia. Mapati

Ah, não comentei. Por ocasião da viagem para o Pará o Léo estava noivo, da Jéssica, menina de coração bom e que não entendia porque o Léo era tão ligado ao teatro e à quadrilha junina. O que ela entenderia depois de vê-lo em cena como ator, talvez ela soubesse que aquilo era o melhor que ele fazia nestas plagas, apesar das dificuldades agora de se manter uma vida a dois e que no ano seguinte seria uma vida a três. O menino Caio Moroni chegaria nesse mundo fazendo sua estreia também em nosso espetáculo O Auto do Divino Nascimento, em dezembro de 2012, apoteoticamente encerrando a peça como o menino Jesus. Lembro-me num dia em meio a uma plateia de cerca de 2 mil espectadores, pessoas chorando com a aparição, pela primeira vez em cena, do pai (Léo) como anjo Gabriel e do filho (Caio) como menino Jesus. Talvez, hoje saibamos o que o universo delicadamente cuidou de fazer.

foto: Facebook Leonardo Góis
foto: Facebook Leonardo Góis

Voltando um ano, em outubro de 2011, estreávamos um novo espetáculo, estrutura simples, texto, pouco cenário e ator. Entrava em cena Léo como dois personagens, um velho e um menino.

Narra a história a bela relação entre pai e filho. Que atravessa o tempo. Certo dia o pai fica cego e isso faz com que o menino vá buscar um remédio eficaz que devolva a visão. Antes, porém, o menino passa por diversos caminhos numa aventura pelo Brasil do interior até que, conforme fora avisado por um gigante e um dragão, encontra depois de uma longa saga o sabiá, cuja lágrima curaria seu amado pai. A performance do Léo nesse espetáculo foi incrível. Ele internalizou os arquétipos dos personagens. A peça retornaria em cartaz em abril, agora de 2014, mas não deu.

Na virada ainda de 2012, nosso primeiro ano novo juntos, como uma família que tem seus problemas, mas igualmente se entende, se gosta, se ama.

Em 2013 Léo vem nos ajudar na Associação Artística Mapati, instituição que trabalha nossos projetos de responsabilidade social e da qual havia poucos meses se tornara diretor. Então, começou a ministrar oficinas de artes visuais na região administrativa de Santa Maria e em Brasília a jovens entre 16 e 29 anos, atividade que certamente o remetia aos tempos de aluno de iniciação teatral no Teatro Mapati.

Bem, foram três meses nesse novo oficio, até que por força  do destino (falta de espaço em Santa Maria) fizemos uma pausa no projeto. Mesmo em pouco tempo, foi uma época em que convivemos muito.

Quase concomitantemente, fechamos um projeto institucional que buscava em linguagem lúdica-teatral ensinar crianças da rede pública de ensino do Distrito Federal a importância da Educação Fiscal como forma de controle social.

O Léo interpretava o Jeremias, um rapaz apaixonado que um dia resolve que iria conquistar a Maria, sua grande paixão desde a infância. Decide então comprar um acordeon, sem nota fiscal, e num embrulho muito bonito entrega para sua amada Maria o presente. Ocorre que, ao manuseá-lo, o instrumento explode na cara de Maria e ela pede a nota fiscal para ir trocar o produto. Não tinha nota e então Jeremias entra em apuros e aprende uma grande lição, não contribuir com a sonegação de imposto e aí, sim, ganha o coração de Maria.

Os personagens de Maria e do Jeremias eram o ponto alto do espetáculo, pois eram muito alegres e, portanto, muito populares, sobretudo entre as crianças. O trabalho foi apresentado para um público de mais de três e mil e novecentas pessoas no Distrito Federal.

Recentemente, víamos fazendo de tudo, espetáculo em regiões administrativas, festas de crianças, somente shopping não, pois acreditamos que merecemos uma plateia que prestigie o espetáculo e não as compras. E o Léo sempre disposto, sempre alegre, mas infelizmente teve de voltar a trabalhar com vendas, na medida em que não estava fixo no teatro. Isso é típico na cultura, sobretudo no teatro, num mês você tem três mil reais, noutro você não tem nada e há subsecretário de fomento à cultura no DF convencido de que o estado é um grande mecenas dos artistas e que precisam trabalhar sob a lógica da economia criativa e alavancar suas carreiras da forma que dá. Certamente ele não conhecia o Léo, certamente não conhece a grande maioria dos grandes artistas populares do Distrito Federal que a duras penas buscam um sol a cada dia e se dividem entre empregos que surgem e uma agenda rala de possibilidade de apresentação no Distrito Federal. Hoje eu estou mais convencida de que podemos ter um fundo de apoio à cultura e diversos fundos que de fato fortaleçam artistas locais, estamos falando de emprego, de renda, ou seja, de comida, de teto, de saúde, de sobrevivência.

foto: Facebook Leonardo Góis
foto: Facebook Leonardo Góis

Esses dias estava comentando em um grupo do WhatsApp do Mapati sobre a impotência que eu tinha em não conseguirmos possibilitar que todos nossos colegas de grupo pudessem viver de seu sonho, de seu oficio. Disse isso ao Léo semana passada, lamentando o fato de ele não poder cumprir temporada de apresentações com o Mapati, porquanto no seu trabalho como vendedor trabalhava de segunda a sábado, das 8h às 19h.

Bem, Léo, com todo respeito, carinho e admiração que tinha por mim, digo a você e publicizo que irei lutar por um mundo melhor pelos(as) trabalhadores(as) da cultura, principalmente do teatro. Não farei isso visando cargo legislativo e sim como operária da cultura, você pode ter certeza de que desistir não vou, podemos até não conseguir uma realidade suíça (vida melhor e digna para a sociedade com igual oportunidades entre classes) em homenagem ao subsecretário ou à sistemática francesa, quando um ator termina uma temporada entra em seguro desemprego até a temporada seguinte, mas vamos lutar por dignidade para a nossa classe.

Deixo a minha tristeza se transformar em saudade, não quis ver tua matéria no caixão, certo que não queria tirar da minha mente a última vez que te vi, que foi há uns 10 dias, em que conversamos, brincamos, birramos um com o outro, sorrimos e tu delicadamente se despediste de mim com um beijo na testa.

Fica em paz, amigo!

Dayse Hansa

10.11.2016

(218)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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