Dois cristãos

A velha de uma aldeia tem um poder estranho: guarda espíritos dos mortos dentro da cabeça. Quando está sozinha, essas almas saem da caixola e ocupam o mundo real. Até que, certo dia, seu neto descobre o segredo. E, ao questionar
a velha, aprende uma lição: as pessoas só morrem definitivamente quando nós as esquecemos.

– Mia Couto (em O Pátio das Sombras) 

Meu sogro que eu não conheci era seminarista lá pelas plagas de Sergipe.

Num fulgurante dia dos anos de 1940, ele notara que, malgrado o não pouco tempo de vivência no lugar de formação sacerdotal, a vocação da batina não lhe era tão predominante assim – impunha-se deflagrar a cisma religiosa.

De conseguinte, cismou o Otacílio de afrontar sua conservadora família, quase toda ela residente em Propriá, município de onde saíram o poeta e ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto;  o senador Gilvan Rocha, derrotado nas eleições de 1982 para Governador do Estado pelo João Alves Filho com seu futuro promissor de Rei da Loteria Federal; o Seixas Dória, governador cassado pela ditadura militar; a Tia Neiva, transcendente fundadora do Vale do Amanhecer, em Planaltina, terra de uma menina sapeca.

Largou suas origens nordestinas e desceu para o Rio de Janeiro com todo o patrimônio que conseguira amealhar até aquele momento: uma mala com alça, mas sem rodinha. Na então Cidade Maravilhosa, quase nenhum dinheiro no bolso, algumas noites passadas na rua mesmo, sonhava com o barraco sem trinco e a lua a furar o zinco.

Sucedeu que, já de fato sem a túnica, conhecera moça recatada e do lar. Juntaram as carências e os afetos e rumaram para Brasília. Aqui, deram à luz cinco filhas e três filhos e completaram mais de seis décadas de casados. O marido, quase noventão, veio de receber em 2016 o chamado divino e se transferiu para o céu, desalentando a Cleia, viúva hoje quase noventona.

Preservo âmbito espiritual. Pulo do menor estado da Federação e em meio aos igarapés desembarco no maior deles, o Amazonas, para compartilhar a história de outro ex militante da igreja, doce gringo, igualmente na faixa dos noventa anos.

Tenho duas filhas e ficaria muito orgulhoso (e reconfortado) se, um dia, eu na UTI, já com o passaporte carimbado, fosse destinatário de um recado como esse que há poucos dias a Leca, apelido da Helena, transmitiu a James, seu…

“Pai,

Meu sentimento é de gratidão pela vida que tivemos juntos. As memórias de amor e os ensinamentos são infinitos na minha cabeça. Quero agradecer a Deus por sua passagem e por me permitir ter alguém tão especial comigo. Vou levar você sempre comigo, e espero que os meus filhos o reconheçam em meus gestos. Me apropriei da frase que você sempre me dizia (“Papai ajuda”) e uso com as crianças todos os dias, mudando o substantivo. Quero que elas possam contar sempre comigo assim como sempre contei com você.

Obrigada por me ensinar sua fé. Obrigada por não ter desistido de tentar me ensinar que Deus, Jesus e o Espírito Santo
eram sim a mesma pessoa e que há mistério na vida que nos ajudam a caminhar.

Obrigada por me ensinar que sempre é possível conceder um tempo aos que amam. Obrigada por estar no pátio da escola para ir me buscar, por estar em casa no horário para eu não me atrasar para a aulas de inglês, obrigada por ajudar nas tarefas e nos projetos que jamais teria conseguido sem a sua ajuda. Obrigada pelo livro de memórias e nos deixar conhecer detalhes sobre sua vida.  Compartilharei com as crianças.

Obrigada pelos conselhos e principalmente por respeitar o meu direito a escolher. Obrigada por me acolher com um sorriso e palavras de apoio após o reconhecimento dos erros. Me perdoe se um dia eu lhe envergonhei.

Não sei como me sinto sobre você ter limpo sua careca com a minha saia rodada, após o pássaro ter feito cocô na sua cabeça. Acho q vou precisar de mais uns anos aqui na Terra para aprender a ter seu senso de humor e leveza, mas também por isso agradeço. Talvez você tivesse tentando me mostrar que nenhum bem material deverá ser mais importante que o bem-estar daqueles que você ama.

Enfim, Pai, o amor é infinito na minha cabeça e no meu coração. Obrigada!

Que Deus acolha o senhor em sua infinita glória, que já não tenha mais sofrimento, limitações. Que você possa sorrir, andar, falar e tudo o que hoje o corpo está limitado. Tenho fé que um dia nos encontraremos e, caso isso não aconteça, saiba que agradeço por termos compartilhado tantos momentos e pelos ensinamentos que ficam comigo.

Por aqui continuo sua filha e você será meu pai.

?

Que Deus nos abençoe

Amo você,

Leca.”

Como se isso não bastasse, ainda tive ensejo de ler a correspondência que meu genro Robson enviou à sua cunhada Helena tão logo soube do passamento do pai dela nesse 29 de abril, da qual ressalto trechos, a reforçar a similitude dos dois casos, ambos de religiosos que se desprenderam do celibato para viver um grande amor:

“(…) Apesar do relativamente pouco contato, eu o considerava muito. Ele era uma dessas raras pessoas que passa uma serenidade e paz de espírito que nos faz sentir tão bem. Tinha um humor refinado e inteligente. Teve uma história de vida única. Além de um amor pela esposa e filhos tão bacana de se ver.

“E eu, frequentemente, conto a história de vida do seu pai. E menciono tb a história que ele me contou um dia de como conheceu sua mãe. E dele narrando, com aquele sotaque típico americano, da reação da família quando saiu padre dos EUA
e voltou ‘para a neve de Michigan de braços dados com uma índia do Brasil

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# Cisma religiosa
# Mia Couto

01/05/2019

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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