Lady D’Arbanville (II)

Iniciozinho da década de 1980, 102 Sul, quadra dos bancarinos, bloco B, apartamento vazado, fundos para a 302 e seu posto de gasolina. Tereza descia todas as manhãs com a Mariana para que nossa segunda filha “brincasse debaixo do bloco” com as outras crianças da idade dela, 1 e 2 anos. Nesse Baixo Bebê do Cerrado, achegou-se a uma moça que levava o filho (ou filha, não lembro bem) para curtir o lugar do mesmo modo. Após um tempo nesse convívio, diversamente do que se diz do pessoal de Brasília, frieza e distanciamento, Tereza convidou-a para ir, junto com omarido, a nossa casa a fim de que pudéssemos nós quatro estreitar relações.

Era dia útil (termo irônico e cruel, veremos), tocaram a campainha por volta das 20h. Abrimos a porta e no hall do elevador a visão contrastante: um homem aparentando quase cinquenta anos, fisionomia algo detonada, ao lado de mulher bonita paca, pele acobreada, cabelos pretos e olhos azuis, vinte e dois, vinte e três anos, no máximo.

Terminadas as apresentações – Leyde o nome dela -, os dois casais acomodam-se, acepipes e bebidas à farta, a conversa se desenrola. O homem era bom de papo, jornalista (sou Deus?) recém-saído das Minas Gerais, lembranças divertidas, histórias picarescas, clima de intimidade e relaxamento se aprofundando à medida que a noite avançava.

O dono da casa (machismo) se desincumbia razoavelmente, orgulhoso da jovem parceira com quem se casara em setembro de 1974 e com quem, perto da temida fase dos sete anos de matrimônio, fazia sala. Acrecente-se, no entanto, que Tereza era atraente nos seus vinte e seis anos, o que me compelia a permanecer atento (escoteiro, sempre alerta) a qualquer investida suspeita do visitante mas sem me descurar, noutra ponta, da admiração da estonteante beleza da anja de curtos cabelos pretos e olhos da cor do céu de Brasília. Todo homem é fdp (feminismo).

No entremeio, aquele senhor e aquela menina nossos convidados dão-se ao incômodo de relembrar brigas conjugais e a coisa fica um pouquinho mais tensa – reconheçamos que ele bem mais desagradável do que ela, quem, em realidade, limita-se a retrucar e rebater injúrias. Apaziguados os ânimos, reencetamos a boa conversa durante cerca de uma hora, depois do que os dois se despedem e vão embora. Rápida ajeitada na casa, anfitrião e anfitriã deletam os momentos ruins daquele encontro dos quatro e apagam a luz para viver os momentos bons de todo casal com reservas de desejo e atração sexual preservadas.

Súbito, toca o interfone, insistentemente, ruidosamente, poluindo a quieta madrugada e assombrando alguns dos habitantes da superquadra de classe média conservadora (pleonasmo?). Tereza justamente me deixa ao desemparo, só, e vai atender campainha mais uma vez na mesma noite.

Grito excruciante: “Você matou minha amiga.” No quarto, transmudado pelo atordoamento, tento me recompor. Agir e agir. Verificar o que acontecia – embora eu já estivesse naquele momento cônscio de alguma desgraça concretizada.

Desço aos pulos os quatro lances de escada. No térreo, dou com o indivíduo de quem me despedira havia uma hora. Desesperado e apoplético, ele repetia sem cessar, babando na camisa e me lançando perdigotos: “A Leyde se jogou da janela, a Leyde se jogou da janela.” Corro para a frente do bloco e estarreço ao vislumbrar aqueles olhos entreabertos (entrefechados?) que não mais eram azul mutante, eram de coloração indefinida.

Cena arrepiante – o corpo, lá em cima sedutor, esparramava-se agora pelo gramado de forma desconjuntada, sem apuro estético nenhum.

http://julianagama.deviantart.com/art/Mulher-dormindo-407366873 - julianagama
http://julianagama.deviantart.com/art/Mulher-dormindo-407366873 – julianagama

 

08 de fevereiro de 2014

(045)

mmsmarcos@hotmail.com

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