Memórias/Memorialistas (LIV)

Nos anos de 1960 a 1980, quem viajava de carro ou de ônibus do Rio de Janeiro para Brasília (ou vice-versa) encarava uma BR– 040 inóspita, parada decente quase nenhuma e postos de gasolina (já havia álcool?) distantes muitos e muitos quilômetros uns dos outros, a maioria deles fechava cedo. Os motoristas (as motoristas eram poucas) esquecidos desse detalhe, tanque de combustível à míngua, punham-se a comemorar quando, impedidos de seguir a jornada pelo ponteirinho na reserva, eram todavia bafejados pela lei das compensações por se encontrar próximos a um dos raros hotéis à beira da rodovia.

Não tínhamos autoestradas (a coisa começou por Juiz de Fora), os nossos carros e os ônibus interestaduais não serpenteavam as cidades, que eram por nós atravessadas em meio a ruas precárias e já razoavelmente movimentadas. Percebam que não falo de Belo Horizonte, que, pela existência de montanhas de ferro ao derredor, “prendia” nossos veículos, colava-os no asfalto, a força do magnetismo, um custo desenvolver velocidade, torque barricheliano.

Não falei de BH, falei de minas de ferro, o que evoca mais uma vez o Chão de ferro, o Zegão aqui dando lugar nas “proezas” ao seu primo Pedro Nava, de cujas memórias me sinto impotente para me desprender, me descolar.

“Numa aberta destas grandes chuvas, vendo chegar a roupa lavada na cabeça duma mulata velha, lembrei-me da negra Cecília. Perguntei por ela à Deolinda. A Cecília lavadeira? Tinha tempos que não via. Tava sumida. Sumida das vistas mas presente na lembrança daquelas férias em que eu fora ao seu barracão em vão. De noite deitei com sua lembrança borboleta escura, pensei nela até pegar no sono e decidi, de mim para mim, procurá-la no dia seguinte.”

Da mesma sorte (ou azar), volvemos ao racismo não sucumbente mesmo duas décadas após a mistificação do abolicionismo. Epa, cumpre repetir: ele, o racismo – e não o abolicionismo – ainda está por aqui, firme e forte. Verdade que o Nava “bate” na mulata, mas não livra a pele (valem as duas acepções) do vascaíno, desprotegido, candidatíssimo aos cornos que o memorialista então na juventude tencionava pregar-lhe sem piedade .

“Fui nos passos do caminho conhecido. Gritei ô! de casa – na porta aberta. Apareceu outra crioula e a alma caiu-me aos pés com as informações recebidas. A Cecília estava amigada com um galego, Seu Antoninho, dono duma bodega no alto de Pirapetinga, quase na esquina do Caraça, rente ao Chalé das Viúvas. Eu tinha passado mais de ano sem pensar no diabo da preta mas à idéia do português de cama e pucarinho com ela – minha cabeça esquentou prodigiosamente. Subi Ghumbo como uma fera e justamente na esquina do Caraça percebi o berda merda do Seu Antoninho descendo, de gravata e colarinho, como quem vai para a cidade. Deixei passar, acompanhei de longe, parei defronte ao Doutor Aleixo e fiquei de alcatéia para ver se ele ia mesmo descer. Veio o bonde. Parou no ponto. O motorneiro virou a lança. Ele entrou. Desceu. Campo livre, voltei e tomei pela ladeira do Caraça. No alto, logo à esquerda, o botequim. Vazio. Entrei, bati com um níquel no balcão e …

Dúvida não havia de que, muito mais interessante do que o posto de combustível da propaganda destes nossos tempos de pré-sal, o boteco guardava preciosidade outra. Atrás do balcão, o predador não divisava pinga, aguardente, cerveja nem pretendia bater um prato de gororoba.

… logo a aparição de Cecília, negra e toda vestida de branco. Sua roupa estalava de goma e ela trazia um ramo verde no pixaim. Riu toda, tranqüila como se tivesse me visto na véspera. Perturbado pedi uma com ferneteBebi, puxei o pigarro, esquentei e soltei o que queria.”

Não se sabe se o priápico trajava calças curtas, talvez não, porque já na adolescência, fase na qual achamos que tudo é possível, tudo é alcançável. Os planos restariam alterados quando do outro lado do balcão havia pessoa astuciosa e fidelíssima. Vemos então o registro da negativa categórica da heroína em época muito antes do surgimento da bem vinda militância das atrizes americanas e das (mais temperadas) congêneres francesas.

“Continuou se rindo e disse docemente que não. Não, não adianta, o Toninho me traz no trinque e eu não faço isso com ele não. Não perco minha situação. Se não lembro? se não gosto? Gosto, bem! mas não pode ser. E não pôde mesmo. Por mais que eu insistisse a diaba foi inflexível. Negava sorrindo, me olhando docemente, mas negava. Implorei…”

O Pedro Nava, tomado pelo recalque, apela para a injúria e a grosseria.

“Ameacei. Não e não e não. Perdi a paciência. Então melhor pra mim, sua vaca! que não pego gonorréia nessa rabo podre. Desci a ladeira trambulhando feito enxurrada. Parei embaixo e olhei para atrás. Ela tinha vindo até sua esquina, tinha. E lá de cima ria docemente, toda de branco, sobrevestida da tarde que caía. Duas vezes ela não pudera, da terceira não queria. Da quarta tinha de ser. Ai! de mim: não seria e a Cecília de impossibilidade em impossibilidade desfar-se-ia no meu desejo e ficaria, eterna, a oportunidade sempre perdida (…).”

 O machão não esmorece. Abandona o protetorado luso onde ambientada a Cecília, a ingrata, como ele a qualificaria páginas adiante do livro, e delibera se enovelar no protetorado italiano.

“Chamava-se Valentina e era filha dum carcamano…” 

27/01/2018

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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