Memórias/Memorialistas (LXXXIV)

À medida que envelheço, tenho vindo a perder certezas, juntamente com o cabelo. Afinal, amadurecer talvez seja isso — perder as certezas, aprender a valorizar a dúvida e a viver com ela.
– José Eduardo Agualusa –

“Desde cedo eu estava nos leitos que nos cabiam e examinava uma a uma. Das antigas, retomava a observação e anotava a evolução de todos os sistemas importantes, verificava cuidadosamente o PTR, o volume urinário, esmiuçava se tinham evacuado – com cólica, com puxos? sem dor? muito? pouco? quantas vezes? muitos gases? fezes duras? moles? escuras? claras? (…).”

“Aí era hora de inspecionar a doente. Face, olhos, pupilas, nariz, narinas, boca, língua, dentes, expressão, fácies. Posição, magreza, gordura, corpo tudo, braços, mãos, pernas, pés, pele, cabelos, pelos, vasos, edemas, vermelhidões, palores, livores, suores, cicatrizes, manchas, tatuagens. Vinha depois o exame dos aparelhos. Palpação do tórax, aplicação da parte distal dos dedos para captar o frêmito da voz, sua distribuição em pontos onde ele é mais vibrante ou menos intenso. Timbre da voz. Tonalidade. A percussão centímetro por centímetro, feita com virtuosidades de pianista: rapidez e firmeza do dedo que percute, prontidão do percutido em ser retirado assim que sentiu o rechaço do som e, simultaneamente, a captação deste pelos ouvidos. A elegância necessária no colocar e mover das mãos. A posição do médico e do doente. Vinha a ausculta – primeiro só da inspiração, depois só da expiração, em seguida dos dois tempos. Anotação das variedades de ritmo, duração de cada, marcação do número de excursões por minuto. Os ruídos anormais e seu tempo de aparição. Passava-se à repetição dos mesmos recursos para o aparelho circulatório. Palpação dos vasos do pescoço, procura do batimento da ponta, verificação do ronron felino do frêmito catário, delimitação do contorno do coração e vasos da base(…).”

“Passava-se ao abdome. O Ari sempre advertia. Conhece-se o médico pela palpação do abdome. Não é amassar como quem amassa pão. No princípio simples aplicação da mão bem espalmada – calor, frio, suor, secura. Depois a palpação superficial – pele, deslizamento, turgência. O sinistro sinal de Andral. Depois os músculos, sua resistência, moleza, renitência. O ventre em tábua. Em seguida as vísceras. Os pontos dolorosos à compreensão, à descompressão. Bordo do fígado, ponta do baço, moleza do intestino, útero grávido, bexiga cheia, fecaloma; alça sigmóide contraída correndo sob os dedos como charuto ou rolete ou linguiça. Os gargarejos e borgorugmas. Percussão, Macisses de derrame ascético. Timpanismos, Inspecção. Umbigo, vasos, as circulações colaterais, a Cabeça da Medusa. Os lugares de maior atenção, como a região do quadrante inferior direito. O ponto de Mac-Burney. O apêndice.”

El apêndice, señores
Es um organito hueco,
Que aunque sólo, débil eco
De passados, esplendores,
tiene para los dotores
transcendental importância,
porque em toda circunstância,
lo mismo enfermo que sano,
proporciona al cirujano
considerável ganância.

#Pedro Nava
#Beira-Mar, volume 4
#José Eduardo Agualusa

19/06/2024
(369)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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