
Memórias/Memorialistas (LXXXIV)
À medida que envelheço, tenho vindo a perder certezas, juntamente com o cabelo. Afinal, amadurecer talvez seja isso — perder as certezas, aprender a valorizar a dúvida e a viver com ela.
– José Eduardo Agualusa –
Intuo já ter cumprido meus deveres para com o Rio Grande do Sul, onde colegas meus de trabalho se transmudaram em amigos e amigas. Uma turma, a mais numerosa, nunca deliberou sair de lá; uma outra veio dar com os costados em Brasília e alguns anos depois se lançou em jornada de regresso aos pampas; e por fim os membros (hoje também se diz membras) do terceiro batalhão, o menor contingente, que se transferiram para o Quadradinho, guardaram as bombachas nos baús e nunca mais se desapegaram daqui, compartindo o fantástico céu da Capital Federal com seus filhos e filhas e decorrentemente com seus netos e netas.
Minha pequena remessa financeira em prol da brava e valorosa gente gaúcha fora procedida na fase do maior desvario das águas lamacentas. A atitude como que sequenciou as postagens que nos últimos meses eu vinha consignando neste blog acerca das memórias do grande Erico Veríssimo. Uma vez perpassados os dois tomos do “Solo da Clarineta”, sem nenhuma fumaça de crítica literária por me faltar competência para tanto, reencontro o quarto volume das memórias do Pedro Nava, “Beira Mar”, do qual eu me mantinha afastado ano e meio.
Antes de ir às praias da zona sul e ao centro do Rio de Janeiro nas suas recordações dispostas nesse livraço harmônico com a obra toda, o memorialista mineiro deita lições sobre a Medicina.
“Desde cedo eu estava nos leitos que nos cabiam e examinava uma a uma. Das antigas, retomava a observação e anotava a evolução de todos os sistemas importantes, verificava cuidadosamente o PTR, o volume urinário, esmiuçava se tinham evacuado – com cólica, com puxos? sem dor? muito? pouco? quantas vezes? muitos gases? fezes duras? moles? escuras? claras? (…).”
Após ouvir as pitorescas representações que as pacientes faziam de seus males, o Nava retomava a, digamos assim, consulta.
“Aí era hora de inspecionar a doente. Face, olhos, pupilas, nariz, narinas, boca, língua, dentes, expressão, fácies. Posição, magreza, gordura, corpo tudo, braços, mãos, pernas, pés, pele, cabelos, pelos, vasos, edemas, vermelhidões, palores, livores, suores, cicatrizes, manchas, tatuagens. Vinha depois o exame dos aparelhos. Palpação do tórax, aplicação da parte distal dos dedos para captar o frêmito da voz, sua distribuição em pontos onde ele é mais vibrante ou menos intenso. Timbre da voz. Tonalidade. A percussão centímetro por centímetro, feita com virtuosidades de pianista: rapidez e firmeza do dedo que percute, prontidão do percutido em ser retirado assim que sentiu o rechaço do som e, simultaneamente, a captação deste pelos ouvidos. A elegância necessária no colocar e mover das mãos. A posição do médico e do doente. Vinha a ausculta – primeiro só da inspiração, depois só da expiração, em seguida dos dois tempos. Anotação das variedades de ritmo, duração de cada, marcação do número de excursões por minuto. Os ruídos anormais e seu tempo de aparição. Passava-se à repetição dos mesmos recursos para o aparelho circulatório. Palpação dos vasos do pescoço, procura do batimento da ponta, verificação do ronron felino do frêmito catário, delimitação do contorno do coração e vasos da base(…).”
Até então, tudo bem. Tudo bem? Primeiro de maio deste penoso 2024, desperto em plena madrugada com fortes dores abdominais. Para quem tem síndrome do colo irritável, isso não é muito infrequente. Ou melhor, há de vez em quando desconfortos, apenas que nem sempre com intensidade, sendo certo no entanto que a pontada que me fez despertar do sono dos injustos era aguda e estipulava inadiável ida ao hospital.
Foi o que fiz. Em lá chegando, início de manhã esplendorosamente radiante, passada uma meia hora fui atendido por um médico de rosto adolescente que me olhou detidamente (quais médicos hoje em dia enxergam o paciente na hora da consulta atômica? São poucas perguntas que o do jaleco dirige a pacientes com enfado e olhar fixo na tela do notebook) e mandou que eu me esticasse na maca. Ali, naquele momento, sem embargo da cólica até aquele momento invencível, pude estimar que nos seus tempos de faculdade de medicina meu jovem “bombeiro de branco” deve ter se arrimado, e muito, nos ensinamentos do Pedro Nava, médico de ambulância, médico legista, médico de tudo. Se vocês não acreditam, detenham-se nas sofisticações do memorialista na descrição do que seja bem atender doentes.

“Passava-se ao abdome. O Ari sempre advertia. Conhece-se o médico pela palpação do abdome. Não é amassar como quem amassa pão. No princípio simples aplicação da mão bem espalmada – calor, frio, suor, secura. Depois a palpação superficial – pele, deslizamento, turgência. O sinistro sinal de Andral. Depois os músculos, sua resistência, moleza, renitência. O ventre em tábua. Em seguida as vísceras. Os pontos dolorosos à compreensão, à descompressão. Bordo do fígado, ponta do baço, moleza do intestino, útero grávido, bexiga cheia, fecaloma; alça sigmóide contraída correndo sob os dedos como charuto ou rolete ou linguiça. Os gargarejos e borgorugmas. Percussão, Macisses de derrame ascético. Timpanismos, Inspecção. Umbigo, vasos, as circulações colaterais, a Cabeça da Medusa. Os lugares de maior atenção, como a região do quadrante inferior direito. O ponto de Mac-Burney. O apêndice.”
Epa, isso me força a concluir essa minha história recentíssima de dores físicas, infecção e restabelecimento. Depois das palpadelas doídas e dos resultados do hemograma completo e da tomografia da barriga, o médico anunciou sem estardalhaço a urgência de se fazer minha operação de retirada do apêndice, até essa inédita fraquejada meu fiel e perfeito companheiro sem nenhum sobressalto nas nossas muitas e muitas décadas de convivência pacífica. Já eram quase 18h do malfadado Dia do Trabalho, eu viajava grogue na maca que me conduzia ao centro cirúrgico.
Papai do Céu, a equipe médica senhora do meu destino se apresentava com médicos, médicas e pessoal da enfermagem mais novos ainda do que meu atendente na triagem do pronto-socorro. Óbvio que minha paranoia e desconfianças na capacidade daqueles profissionais de roupas esverdeadas me levaram a considerar que dessa eu não passaria, com embarque já providenciado, tanto que ao longe soavam as trombetas angelicais. Qual nada, no dia seguinte eu já de alta voltava para casa, fagueiro, encorajado e um pouco metido a besta, pela visível recuperação, exceto os soluços meus acompanhantes por dias seguidos e que vira e mexe dão o ar da graça, hic, hic.
Minha “vingança” contra a malha médica (na célebre expressão do João Ubaldo Ribeiro) que me botou em campo de novo aflora nestes versos transcritos pelo memorialista, na linguagem Mercosul:
El apêndice, señores
Es um organito hueco,
Que aunque sólo, débil eco
De passados, esplendores,
tiene para los dotores
transcendental importância,
porque em toda circunstância,
lo mismo enfermo que sano,
proporciona al cirujano
considerável ganância.
#Pedro Nava
#Beira-Mar, volume 4
#José Eduardo Agualusa
19/06/2024
(369)
mmsmarcos1953@hotmail.com

Trapos de língua

Memórias/Memorialistas (LXXXV)
Você pode gostar

Poemas de uma carioca desgarrada (XXIII)
08/06/2020
Recordações ultrapesadas
27/11/2022