Memórias/Memorialistas (L)

A morte é uma coisa feia e ridícula. Acho que muita gente não quer morrer só por causa do vexame: ficar ali, exposto, coberto de flores, escutando o batraquear melancólico dos parentes e amigos, sentindo o corpo perder sua última graça, os últimos vestígios de beleza, e uma manada de pequenos animaizinhos secretos, invisíveis, devorando as tripas, os dedos, o coração, fazendo cosquinha no cérebro. E o morto tentando segurar o fedor… Prendendo a respiração… E só depois de muito tempo reconhecendo que o mau cheiro que incomoda todos, esse odor que atrai os urubus para cima da casa, como gárgulas vivos numa revoada solene, vem de sua carne se decompondo. Todo defunto passa por essa situação ridícula.

 Monólogo teatral Sofia, de Dioclécio Luz

Em nossa cultura, antepõem-se dificuldades para se falar da morte, todo mundo evita o tema como se dissesse respeito somente aos marcianos. Verdade que, no batalhão dos revolucionários, dos inconformados com esse tabu, dispomos de iniciativas louváveis – uma delas, um site com enfrentamento aberto do luto.

Educado em família de classe média urbana, eu navegava em ambiente no qual os membros tinham o passamento como coisa da metafísica, um fenômeno fora de nossos lindes, ninguém ali iria falecer, salvo na idade provecta, depois dos setenta anos; se atualizarmos “monetariamente”, na casa dos oitenta ou, em cálculos ainda mais precisos de valor presente, quando ultrapassados os noventa anos.

Nesse caso, a morte deixava de ser antinatural, não mais era uma desgraça (minha mãe nos censurava sempre que a qualquer título pronunciávamos essa palavra, ela dizia que dava azar).

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Médico também das necropsias, o Pedro Nava, no Chão de Ferro, terceiro volume de suas memórias que releio à exaustão, retratou muito bem o estranhamento dele, menino, perante a morte, cuja representação social ocorre no velório.

“(…) Mal pude conter meu pasmo diante das modificações exibidas pelo nosso mestre. Ele, que em vida era cor de vinho, estava como se tivesse sido passado a cal, branco como se o que víamos ali, saindo das mangas do fraque e dos colarinhos, emergindo das flores e dos ramos, não fossem suas mãos nem seu rosto – seus restos – mas seu molde em gesso. Chegando mais perto vi que a cor não era uniforme e que contrastava com os livores roxo-bringela da orla das orelhas, dos declives do pescoço e das pontas dos dedos. Estava imóvel ali. Sua fantástica pressão arterial caíra a zero. Pétreo e imóvel, imenso e marmóreo. Não mais correria de segunda a sábado, suando, respirando de arranco, apressando sua figura bojuda e respeitável – para pegar os carris…”

Não integrava meus planos tornar com o professor Tifum neste blog. Entretanto, voltei ao fantástico personagem por virtude de recalcitrância do Nava. O mestre do memorialista das Minas Gerais e do universo é com efeito imortal, bem que paradoxalmente ele se nos apresente duro e retesado no pijama de madeira. E numa figuração pavorosa de entidade iluminada e luminosa, a compelir o garoto a sair das exéquias para se asilar na residência dos tios.

 “(…) A custo, consegui fazer abrir a Pensão Maurity. Subi para nosso aposento, acordei os tios, expliquei minha presença insólita àquela hora da noite, deitei no sofá, tudo apagou. Mas quem disse? que eu podia dormir. Assim que começava a modorrar ouvia num sussurro o passa pra cá seu patife! tão do nosso Tifum, abria olhos aterrados, no escuro e via encostada à minha, a cara do defunto – redonda, luminosa e branca como a lua. Acendia a luz, tudo sumia. Apagava, recomeçava a visão. Acendia. O que é isto? O que é que você tanto acende e apaga a luz? menino. Era a voz da tia. Tinha de dar uma explicação. Não podia confessar medo de alma e apelei para recurso que mantivesse acordados os tios. Tonteira, dor de barriga seca, de não poder mais. A medicina de minha tia era igual à do Cruz e logo ela me ministrou uma dose daquelas de sal amargo. Enquanto esperava o efeito eu fazia um estardalhaço, me torcia, gemia de dor, para manter os tios acordados e afastar o  morto com a presença dos vivos. Quando o sol apareceu varrendo todos os pavores, fui às privadas mais uma vez, vesti-me e corri para a angra do colégio onde os dormitórios lotados eram pouco propícios a aparições. Minha turma nunca esqueceria oTifum e quando de nossa conclusão de curso seu retrato ia figurar no nosso quadro…”

#Monólogo Teatral Sofia    #Dioclécio Cruz    #Pedro Nava   #Chão de Ferro   # Tifum   Morte   Velório

 

30/07/2017

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