Memórias/Memorialistas (LII)

Quando nos lembrarmos deste tempo, nos lembraremos de que foi o tempo em que galanteio virou assédio sexual. A própria palavra “galanteio” ficou antiga e sem sentido. Era um elogio dirigido por um homem a uma mulher — nunca de uma mulher a um homem — enaltecendo sua beleza. Os homens que faziam galanteios eram galantes (outra categoria humana que desapareceu) e agradavam às mulheres com seus elogios. Se havia uma intenção sexual por trás do galanteio, era remota. Importavam mais a criatividade do galanteador e a satisfação da mulher lisonjeada, e o elogio raramente levava à cama. Já havia, claro, uma conotação de poder machista na lisonja: só homens podiam ser galantes. Uma mulher galanteadora seria uma aberração, própria de despudoradas, provavelmente lésbica.

(Luis Fernando Veríssimo)

O assunto bombou nas redes sociais, virou capa de revista semanal,  reacendeu o debate sobre racismo no Brasil. Pôs na rinha a turma dita letrada, esporas e bicadas fustigantes – um lado absolvendo o jornalista; o outro, partidário de fazê-lo arder no caldeirão do inferno.

O William Waack  (voltará à bancada?), se por acaso me conhecesse, carimbaria minha carteira de motorista daquele carro barulhento. Meu pai e minha mãe trouxeram à luz, alternadamente, três filhas e três filhos, sendo eu o segundo da prole, membro do núcleo mestiço, tanto que minha irmã terceira da fila, integrante do segmento ariano e poeta carioca desgarrada,  me chama até hoje de crioulo. Com a ressalva de que o tratamento que ela me dispensa é absolutamente carinhoso, nada próximo do revelado naquele momento pelo apresentador ensandecido.

Como ficamos se, nessa jornada que este blog empreende pela obra de três (por ora) grandes memorialistas brasileiros (Paulo Duarte, Afonso Arinos de Melo Franco e Pedro Nava), vez que outra resvalarmos não apenas no racismo, senão também no assédio sexual? Tranquilizem-se os/as que porventura (ou desventura) vão ler esta postagem, que deve se desmembrar em outra(s).

O Nava reporta episódio acontecido na família dele quando findava a Grande Guerra, portanto idos de 1918, quando a abolição da escravatura (quase revogada nesses dias pelos nossos valorosos representantes públicos) completara trinta anos, um tico de tempo diante dos mais de quatro séculos de ignomínia.

“Era um sobradinho de porão habitável e o Zegão ocupava neste o salão da frente, peça ampla, de dia toda ensolarada mas que dava, para trás, em regiões úmidas e confusas da casa, nesse ponto não assoalhada e toda cimentada como o eram uns depósitos de coisas velhas, as privadas, o quarto da cozinheira e o cacifro da copeirinha. A propria Maria bem-amada. Pois o Zegão soltou-me o romance. No princípio ele apenas desejara o diabo da mulatinha mas acabara naquela paixão de que nem era bom pensar. Ele ia e vinha dentro da casa, tomando as posições prodigiosas dadas pelo serviço doméstico. Um braço que se levanta para limpar um alto de armário e era a manga caindo e mostrando o sovaco, levantando todo o vestido no esforço e deixando entrever um princípio de perna. Os agachados favoráveis à forma das nádegas e aos olhares de quem vem de frente e arrisca um olho nos joelhos, entre as coxas e às vezes lobriga o escuro do triângulo. Sem calça, sem calça. Limpando o chão, de quatro, de cata-cavaco, mostrando por trás a bunda que levanta as anáguas, de cima para baixo os seios entrevistos pelo decote do vestido caído. A atitude hierática trazendo a oferenda de uma bandeja com a água o café, a mão estendida com a carta, o jornal, o embrulho – perto, perto, perto de se sentir o oleoso dos cabelos, o almíscar do corpo, o suor seco da roupa ressuada, o aliáceo das axilas, o acre do resto, o doce do hálito e outros aromas, efluências, odores, exalações, eflúvios que se desprendem e sobem dum corpo jovem e forte e belo como a emanação das flores, das folhas pisadas, das frutas maduras; como o cheiro concentrado da fumaça das aras e dos turíbulos; o que vem no vento carregado de noite e mar e sal.”

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O nome acima referido por duas vezes, que continuará sendo citado, é do primo do maior memorialista de nossas plagas. Tanto ele, protagonista, quanto o Nava, mero escada, formavam a dupla aliança de adolescentes nessa época de derrota da Tríplice Aliança…

“Ah! Nessas horas o Zegão reniflava e absorvia pelas ventas a Maria que ele ainda não ousara atracar. Gostava de esperá-la vindo das compras, com a tia, uma cesta pesada na cabeça, a espinha endurecida no esforço, os seios projetados, a cabeça, a espinha endurecida no esforço, os seios projetados, a cabeça ereta como as das estátuas portantes do Erectêion. Absorvia-a com os olhos, devorava-a na luz. Gostava de vê-la, de proa, seguindo o roulis e o tangage da bacia e das nádegas como os duma ave vogando. Arrostando todos  os perigos passara a espioná-la, vira-a sentada na banca da latrina, uma nesga, pelo buraco da fechadura. Dera para fiscalizar  o banheiro de baixo, logo depois da hora que ele sabia ser a do seu banho, de tardinha, preparando para servir o jantar.”

… e de fascínio pela Maria.

“E que mulata! Teria seus quinze, dezesseis anos. Tinha a roupa em cima do corpo e cada movimento seu era como se se animasse uma rede cheia de pombas. Tinha os olhos excessivos da raça, era cor de cobre escuro, cabelo moroso, bem acamado e aberto ao meio. Admirei sua naturalidade. Olhou o Zegão, depois a mim, deve ter visto nossa semelhança porque achou engraçado e sua boca sorriu mostrando os dentes que pareciam mais claros no roxo quase preto das gengivas e dos beiços. Tinha os seios pequeninos, desses de esgarçar corpinho e vestido – de tão duros. Ao sair apreciei a firmeza de suas nádegas e o rego onde colava um pouco a saia e pude vislumdeslumbrar, saindo das chinelinhas, seus calcanhares cor-de-rosa contranstando com o bronze da pele da canela onde velha ferida deixara cicatriz de um azul-noturno metálico e profundo. Nunca mais esqueci a graça de sua silhueta de menina e moça (…). Toda ela era floral e petalar como um rápido beijo adejo.

“Mas eu queria saber, saber até que ponto tinham ido as coisas e como. O Zegão disse que tinha sido muito difícil. Ele com medo dos tios. E você sabe que nessas coisas eles não brincam… Mas começara o namoro com cautelas de ladrão. A Maria fingia que não via, mas via, porque rebolava mais…”

Iremos saber daqui a pouquinho de que maneira a coisa rolou.

Racismo   #Assédio sexual   #Galanteio   #Luis Fernando Veríssimo
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William Waack   #Idos de 1918   #Zegão

14/11/2017

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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