Memórias/Memorialistas (X)

Não é razoável negar ser cortante e reparador o bisturi de Afonso Arinos de Melo Franco. Nossa incursão pela “Alma do Tempo”, aqui na invocação dos trechos acerca de Brasília, faz-nos acusar sem titubeios o corte da lâmina, que, tal como a dos mais competentes dos cirurgiões, cura, restabelece o paciente – mas como dói…

Por isso mesmo, a Conceição já deve ter nos abandonado. Retomemos, mesmo sem a preciosa companhia, a longa jornada noite adentro (obrigado, Eugene O’Neill) puxando os itens que, justamente desconstrutores (sem trocadilho), abordam as características de cidade fabricada.

“(…) No espaço ainda diminuto da cidade (diminuto, apesar da amplidão, das perspectivas, em comparação com o Rio ou São Paulo) as desigualdades escandalosas como se revelam com mais fôrça. Claudel dizia que uma das coisas estranhas da cidade chinesa era a ausência de máquinas. Em Brasília o estranho é a ausência de bichos. Só se vêem máquinas, automóveis luxuosos, do último tipo, jipes, caminhões, niveladoras, lambretas, helicópteros, aviões. No entanto, ao redor, é a infinda caatinga sertaneja, torrão de terra bruta, natura primeva. Brasília é como uma ilha no meio do deserto. Sente-se, aqui, a sensação de estar prisioneiro, não do confinamento, mas da amplidão. Centro arquitetônico. poeirento e mecanizado, gritante é o seu desligamento do meio em que jaz, e, portanto, o seu artificialismo. Como eu acentuei no discurso acima referido, Brasília é um esforço de expansão geográfica; não atingiu, ainda, o ponto de constituir um centro de integração sócio-econômico. Brasília não tem a naturalidade de uma cidade nacional; exibe o artificialismo administrativo de uma cidade federal (…).”

http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=404892&page=198
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Como se vê, muitas coisas mudaram quando consideramos já o ingresso em 2014, e a Conceição obviamente não divergiria. Para os entusiasmados e para os empedernidos, Brasília explodiu, chamou para dançar Goiás, Tocantins, os dois Mato Grosso, rincões do Norte, dezenas de municípios do Nordeste. E o nosso mineiro, não sei se tomado pelo banzo, continuava soltando imprecações…

“(…) Não vi ainda um cavalo de montaria, um burro carregado de verdura, um carneiro, um gato vadio, uma galinha viva. A ausência de árvores faz com que não existam pássaros, a não ser em gaiolas. Até agora, só vi um cachorro, prêto e lazarento, cheirando restos na porta de um bar americano, na avenida W3. O único bicho, o único animal que se vê em Brasília é o candango, o trabalhador. Exibe-se, deslavada e brutal, a diferença entre nós, homens, e êles, bichos. Nós temos tudo, êles, que fizeram a cidade, nada (…).”

Agora, as últimas postagens sobre o tema – a primeira, a mais cruenta; a derradeira, definam vocês se atual.

Nelas duas, minha ausência preencherá uma lacuna (obrigado, Stanislaw Ponte Preta) e só haverá espaço para o memorialista que deu nome à principal lei contra a discriminação de raça no Brasil.

Até breve.

 

14 de janeiro de 2014

(040)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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