Nenem de Caratinga

Certos filmes, como certas pessoas,
só são interessantes pelas elipses, os silêncios,
aquilo que se não mostra. Não há silêncios deselegantes.

(José Eduardo Agualusa)

Meu pai, não sei se movido e fustigado por algum recalque, ou se por blague (homenageio a mãe dele, que falava o francês aprendido com as freiras no Colégio Sion), costumava se referir à Caratinga como subúrbio da igualmente mineira Carangola, megalópole onde, em 1924, o velho surgiu no mundo.

A produção de café era (ainda é?) o esplendor de Carangola, a Princesa da Mata. Ali, nas primeiras décadas do século passado, transitaram em início de carreira os juristas Victor Nunes Leal, Carlos Medeiros Silva, Pedro Baptista Martins (com perdão pela imodéstia, meu tio avô paterno).

A vizinha Caratinga, a sua vez, disparou canhões lançando na Baía de Guanabara o genial Ziraldo e sua talentosa família; fez o polêmico Aguinaldo Timóteo aflorar na música e ao depois na política (alô, mamãe); enriqueceu a memória nacional ao presentear o ramo da biografia literária com o Ruy Castro, também jornalista como a conterrânea Miriam Leitão, profissional que admiro pelos artigos nos quais defende as mulheres e ou ataca o preconceito racial; incorporou ao setor público de óleo e gás Maria das Graças Foster, trajetória marcada pelo viés técnico. A propósito, insta lembrar, alçaram-na presidente (Petrobras) durante período dificílimo, anotando-se que, segundo consta, não sofrera em sua carreira na estatal nenhuma investida do Ministério Público ou da Justiça.

Deixássemos de adicionar a essa reduzida mas qualificada e preciosa lista um cara muito do porreta, a exaltação restaria lacunosa.

As gatas e gatos pingados ledores deste blog sabem que, completados meus dezenove anos, ingressei no Banco Central (vide os tópicos “Bacenianas”). Naquele remotíssimo 1972, teria o jovem empossado de se apresentar a contento perante os sisudos e conservadores burocras da autoridade monetária. O cabelão que cortinava os meus ombros, moda naqueles dias, havia que ser desbastado, receber um trato de maneira a afastar a ideia de que eu pudesse integrar alguma banda pop sueca ou australiana, mesmo eu sendo neguinho.

Minha então gerência (hoje departamento) de lotação situava-se no Setor Comercial Sul, Edifício União, o primeiro da fila, em frente ao atual Hospital de Base. Não me recordo qual colega me indicou um salão de barbeiro nas imediações (Edíficio JK? Edifício Marcia?). Em lá chegando, terno de gola maior que os flaps de um Boeing, me dirigi ao proprietário (Raimundinho?), que, ocupadíssimo, sugeriu um colaborador seu para a incumbência de me erigir num cavaleiro “digno” de frequentar a entidade responsável pela integridade de nossa moeda e higidez do sistema financeiro.

No primeiro corte, percebi que o homem entendia do riscado (essa expressão é nova), tesoura e navalha Madame Satã desfiguraram o menino típico  dos anos 70 – sem no entanto deixá-lo com aparência de milico das fileiras da tenebrosa ditadura Médici. Passadas algumas centenas de semanas desse furor de desbastamento, minha cabeleira varrida e depositada na lixeira de ferro do recinto, o Nenem abriu seu próprio estabelecimento, Concorde, espremido pelas farmácias da 102 Sul.

Me ocorrem as observações adiante:

– desde um bom tempo, o salão passou a funcionar no Centro Empresarial São Francisco, na 102/103 Sul;

– em nenhuma hipótese, há gritarias no ambiente. Piadas e brincadeiras são permitidas (e estimuladas), porém sempre por iniciativa de cliente;

– durante o corte, desenrola-se conversa somente se deflagrada por quem está sentado na cadeira giratória. Não existe iniciativa nesse sentido por quem está de pé com tesoura e pente na mão;

– creiam, não sei o nome do Nenem pois nunca lhe perguntei nem ouvi eventualmente algum cliente chamá-lo que não fosse pelo apelido consagrado;

– o traí rarissimamente, uma única vez num salão do bairro do Leblon e umas outras vezes com uma ex-namorada, que, além de grande cantora, de repertório sofisticado, corta cabelos divinamente;

– aliás, o Nenem, que não é parente do Benito de Paula, não gosta de cortar cabelo de mulher (diz que não sabe), constando que ele jamais teve cliente do sexo feminino em seu salão;

– nessas mais de quatro décadas, apesar de não me agradar muito o topetão armado após o término da coisa, Neném desconhece tal “insatisfação” (tomará ciência disso se por acaso for ler estas mal traçadas);

– para mim a gorjeta é sagrada;

– dei-lhe presentes em época do Natal;

– o sacana contudo, vista grossa à fidelização, nunca me premiou ao menos com um corte grátis ou com um desconto, mesmo eu tendo perdido de lá pra cá um pouquinho de cabelo;

– quarenta e seis anos de marcha do tempo e nossa parceria perdura até hoje;

– viva o Nenem, com sua camisa azul e ainda muito ativo a caminho dos oitentinha. 

18/02/2018

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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