Memórias/Memorialistas (XXXVIII)

Critica-se muito o costume atual de se lançar toda sorte de confidências e segredos familiares e pessoais na internet, rede que, ao ver de Umberto Eco, recentemente falecido, ensejou o surgimento de uma penca de idiotas a dizer asneiras. Ainda bem que ele não me lia.

Porque escritas em livros, as memórias referenciadas neste blog não estariam atingidas pelo ácido comentário feito pelo cultíssimo intelectual oriundo da Itália.

Para além da forma de veiculação de confissões, os autores até o momento aqui presunçosamente por mim homenageados, Paulo Duarte, Afonso Arinos de Melo Franco e Pedro Nava, encontram-se imunes ao opróbrio pelo simples motivo de que os três formidáveis memorialistas colacionaram atos e fatos do passado de suas vidas no bojo de refinada literatura que nos encanta e hipnotiza, quase que valendo por si mesma.

Uma vez que não há bem que sempre dure, é chegada a hora de se despedir do Paulo Duarte – ou melhor, do volume 2 – trazendo como brinde final os trechos adiante.

“(…) desde muito pequeno eu tinha, assim, uma espécie de nojo do corpo humano, inclusive o feminino. A mulher de quem mais me aproximei na França era a pagem de meus irmãos, a Maria, a quem eu queria muito bem mas não tolerava o seu cheiro insuportável. Mamãi lutava para que ela tomasse banho diário, mas era aquela dificuldade! Desde pequenos, vovó Rosinha nos ensinara a tomar banho diárioi. E eu, na chácara da Rua da Outra Banda, me acostumara a tomar mais um à tarde, este escondido no ribeirão dos Bagres, no fundo da chácara. Tinha horror em ficar parecido com os meus companheiros de brinquedo que, brancos e negros, estavam sempre cheirando a poleiro de galinha. Com a roupa não me incomodava, até gostava mais de roupa velha do que de nova; andava em mangas de camisa e muitas vezes a calça suja de terra, fosse lá do que fosse, mas ao menor cheirinho lá ia eu em busca do ribeirão dos Bagres ou do chuveiro do quintal do Hotel S. Rafel e, agora, o chuveiro do Hotel Royal. Não me suportava quando começava a ‘cheirar a frango’, expressão de minha avó Rosina, para nos incentivar ao asseio exagerado daquela velhinha limpinha, cheirosa até nos seus últimos dias.”

A preocupação do então garoto Paulo Duarte, louvável embora, é pouco comum em meninos, seja naquela época, seja em nossos dias. Invariavelmente, essa turma está preocupada em brincar e brincar. Nada de banho, salvo quando os pais fazem a convocação de voltar pra casa e entrar no chuveiro sem choro nem vela.

O que desperta interesse e curiosidade nestas últimas passagens não são em princípio os sinais de misoginia do escritor – que é só aparente, haja vista o respeito e a corte que ele faz às mulheres em toda a sua obra.

Impressiona a coragem no expor sensível e delicada questão com uso de palavras cruas e diretas.

“Muitas vezes, quando acontecia uma menina bonita e bem arranjada me olhar de cima, o primeiro pensamento de represália era matutar o quanto poderia ela cheirar mal por dentro. Esse, por dentro, eram as suas axilas, as partes enfim que precisam ser sempre muito bem cuidadas para não azedar…”

Não satisfeito, arremata da seguinte maneira seu depoimento:

“Mais tarde, quando comecei a ler a vida dos grandes artistas da Renascença, ou mesmo, dos gregos, não podia compreender aquele amor ao corpo humano, manifestado por muitos deles. Eu achava o corpo humano muito bonito, mais no mármore ou na tela do que na realidade, mas não distinguia mais beleza artística num nu feminino do que num cavalo de raça, nos meus cães, principalmente nos meus gatos, dentre os animais que mais me comoviam pela sua leveza, ao ponto de não me lembrar sequer que estavam expostos às mesmas vicissitudes repugnantes, do que qualquer um de nós.”

http://www.editions-delcourt.fr/special/visiondebacchus/img/image047.jpg
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03 de março de 2016

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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