O perfume

Na Playboy  de março p.p., o Mario Prata, não bastasse ser escritor dos bons e ter trazido ao mundo um filho que é do ramo e bate um bolão aos domingos na Folha de São Paulo, presenteia-nos com uma deliciosa crônica. Nela, lemos a historieta de um homem, ele mesmo, situado em geração pouco acima da minha, apegado à macheza, cujos sinais nos dias de hoje se esfumaçam cada vez mais.

Lembro que, à época sobre a qual ele se detém na revista (lá se vão cinquenta anos e tijolada), não se admitiam atitudes e gestos, digamos, afrescalhados. Era muito evocado na minha família um episódio, de duração curtíssima mas com alta carga de homofobia.

Viagem de Brasília a Goiânia, ou de lá para a Capital Federal, não importa. Três no carro. E que carro!

http://cartype.com/pics/3826/full/vw_karmann_ghia_fs1.jpg
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Na realidade, o veículo é mero figurante nesta postagem. Porém, é quase impossível não homenagear esse carango (mais um termo da era Antes de Cristo) que nos fascinou durante toda a infância e juventude. Incontida é minha inveja tanto do sereno e afável Paulinho da Viola, dono de um Karmann Ghia quase todo reformado por ele mesmo na garagem de casa, quanto daquela personagem ninfomaníaca, moça de franja a desfilar com um KG vermelho – e ainda por cima (sem trocadilho) conversível – nos capítulos finais da última novela global das nove que acabou por aí.
Três viajantes. Um tio meu (paterno) de copiloto; ao volante, um grande amigo da família (que anos depois namorou uma bela tia materna minha, já falecida), e no banco traseiro, duro paca, nada é perfeito, o nerd sobrinho do motorista. O cerrado ressequido passava como um filme mudo na janela fechada quando esse passageiro do banco de igreja, com a inocência de seus doze anos, exclama: “Que cavalinho bonitinho!” O tempo, não lá fora e sim no interior da “máquina”, fechou, e fechou feio. Não sei se o tio do garoto abominou os dois diminutivos xifópagos, ou a voz que teria saído um pouco fina, ou ainda a admiração do menino pela animália, ou mais exatamente o conjunto da obra. O fato é que o chaufer ( de chofer; no Brasil, até ao meio do Sec. XX, predominava o francês) teve a pachorra de parar o carro, olhar para trás e disparar com voz aterradora: “Fala como homem, porra.”
Os costumes eram assim: azul de um lado, rosa do outro: futebol pra menino, boneca pra menina; Bolinha pra cá, Luluzinha pra lá. O machismo também permeava a intelectualidade. Não sei se a frase é do Millôr Fernandes (que infelizmente já se foi) ou do Jaguar (que felizmente ainda está por aqui): “Quem escreve ‘veado’ com “e” é viado.” Para além do debate sobre morfologia, o que aflora é a homofobia. Tem mais. O gênio da raça, nascido, como todos sabem, na Zona Norte do Rio de Janeiro (bairro do Meier), vendo muitos e muitos homens sistematicamente saindo do armário, soltou esta outra pérola homofóbica: “Sou a favor do homossexualismo masculino, desde que não seja obrigatório para todos.”
Tempos difíceis nesse particular. Nos meus 8, 9 anos de idade, sandália de borracha (Havaiana, Ipanema, Rider) era coisa de mulher. Homem de brinquinho? Só muitos anos depois.

E o perfume com isso tudo?

 

09 de junho de 2014
(068)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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