Odaléia, Noites Brasileiras (II)

Das doses de pinguinha que bebi em dois copinhos de vidro grosso, caprichadas pelo dono do botequim (vascaíno que nem eu) onde de conseguinte pude reaparecer e mostrar meus “conhecimentos gerais”, sobrou nada para o santo. Sorvi tudinho, não ficou uma gota sequer. Para o bem e para o mal, me embriaguei com as histórias de vida familiar e musical do Tim Maia e do Gonzagão/Gonzaguinha.

Quanto a esse filho largado pelo pai no Morro de São Carlos no Rio de Janeiro (com um casal amigo, “diz lá pra Dina que eu volto/que seu guri não fugiu”) e num internato em moldes suíços na cidade fluminense de Miguel Pereira, praticamente o documentário contempla apenas a vida em família; o menino penou.

No tocante (sem trocadilho) à musical, o diretor limita-se a referi-la como trajetória de sucesso.  A qual, vale frisar, representou um bálsamo pra gente durante certa fase da ditadura militar, màxime na poeticamente subversiva “Comportamento geral”, cantada no filme e que gera emblemática discussão entre pai e filho (“Deve pois só fazer pelo bem da Nação/Tudo aquilo que for ordenado/Pra ganhar um Fuscão no juízo final/E diploma de bem comportado”).

Na tela (no meu caso, telinha), destaca-se uma personagem preciosa, retroanunciada e injustamente esquecida até nossos dias.

Ai de quem quer negar esse mar de veneno
Mil vezes maldito na inconsciência das vidas à margem
Há de ser
Minha cantora esquecida das noites brasileiras
Te amo
Compositora esmagada dessa barras brasileiras
Te amo

Recordo que, na minha pré-adolescência, meu pai, tido por pé de valsa, falava muito do ambiente de sensualidade e certo exibicionismo dos dancings do Rio de Janeiro, espécie de cabaré onde as moças contratadas da casa se distribuíam estrategicamente no salão aguardando o chamamento que os rapazes (alguns já nem tão rapazes assim) faziam para com elas formar par dançante. Erro se digo convite. Cuidava-se, isso sim, de relacionamento profissional desde que o pretendente ia ao guichê e comprava um cartão (um pré-pago avant la lettre) para se habilitar ao prazer da contradança. Aos amadores em todos os sentidos, indivíduos do dia, sol na cabeça a arder os olhos, cabia curtir a tranquilidade sensaborona do lar.

Minha heroína doente do peito
Minha menina da luta
minha morena catita
Ah! minha preta

Eu ouvia fascinado aqueles relatos, o que, sendo fidedigno, não durava muito tempo. Súbito, vinha meu desconforto porque meu velho trazia a lume os graves problemas clínicos sofridos não raro pelos boêmios que batiam ponto todas as noites e se aventuravam durante toda a madrugada nas boates, desbragadamente fumando, bebendo e dançando. Foi nessa ocasião que me dei conta da existência de uma palavra terrificante: hemoptise.

Furando cartão
cantando nos becos
tossindo nos cantos
o lenço na boca, o sangue
A mão na garganta
a perna já bamba
a força não tanta
a vida tão tonta

                Meu pai venceu uma tuberculose (ganglionar) mas Odaleia não teve a mesma sorte e sucumbiu conforme tão sentidamente a Nanda interpretou no filme.

Eis Odaléia em busca de um sonho dourado
vai Odaléia, delírio de um dia
Léia, retrato guardado em meu quarto
Minha Dalva
Minha estrela guia
na fome de amor
na voz estancada
no ouro da lama
nos humildes enganos
saiba Odaléia pequena
Te ouço
Te vivo
Te amo

Depois de tanta tosse e expectoração, convido vocês, sem necessidade de furar cartão, a se comover com esta música, para mim a mais bela do Gonzaguinha.

18 de janeiro de 2016

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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