Memórias/Memorialistas (XXII)
No apanhado anterior de descrições – que não se limitam em ser fisionômicas – me fixei num personagem somente, o Dr. Belisário. Para a forja do atual, amontoarei pessoas e um causo. Assim procedo obcecado pela magia cirúrgica do Pedro Nava vivificando essa turma como se todos e todas estivessem materializados em nosso tempo, à nossa vista, desfilando para nós, plateia extasiada. Um mosaico, cenas pospostas.
Abro a função com o Dr. João da Cruz Abreu.
“(…) perseguido pela mesma asma tirana dos Costa Barros que cortava o fôlego de meu Pai e de minhas tias Dinorá e Alice. O João Abreu vivia agasalhado e nem no verão carioca deixava seu sobretudo marrom – do mesmo marrom de seus dedos magros, queimados de nicotina. Ele não cessava de fumar e alternava os cigarros de verdade, os de tabaco, com os de datura e beladona – favoráveis à sua respiração. Tinha a voz retumbante dos enfisematosos, era um conversador infatigável e cheio de verve…”
Sequencio convocando a sobrinha de tia Eugênia, a Eponina (como chamar esse nome de mulher a não ser nas novelas das seis?), tudo indica uma das primeiras paixões de infância do nosso memorialista fenomenal.
“(…) Mocetona alourada e de olhos escuros (…). Sabia histórias tão lindas (…), sobretudo uma, do mancebo índio que, para dar prova de amor pela cunhã, não hesitava em enfiar sua destra dentro de igaçaba cheia de taturanas, saúvas, escorpiões, e lacraias. A bicharia deitou fogo na mão do guerreiro e ele sorrindo… O braço tão inchado que precisava quebrar o pote. Dor tamanha e ele sorrindo… Eu começava a chorar, não por causa do moço, mas por motivos mais complicados e que se explicavam pelas acusações que eu fazia à bela Eponina. (…) Ai! Eponina, Eponina, você não era capaz de deixar ferrar seu braço por minha causa. Ela dizia que sim, sim, que deixava. Mas como eu poderia saber?”

Pulo algumas páginas, e não é um salto qualitativo pois não há falar em upgrade. Os trechos do livro, todos eles, se equivalem, não existe nenhum que seja melhor do que outro, o clímax é permanente, imorredouro. No que reproduzo abaixo, não é enunciado todavia o nome da personagem. É que o Nava achara por bem nos sonegar quem era a diva – em verdade, uma mulher que eu cegamente, obedientemente, também me apressei em considerar linda, malgrado travessa.
“(…) Com poucos meses de Rio de Janeiro perdera o ar provinciano, aprendera a vestir-se, a calçar-se, a enchapelar-se, botara corpo, corneara o marido e virara naquela princesa, naquela rainha… Ela tinha o colo redondo e farto, a cintura fina, a amplitude de cadeiras, o vasado anterior fazendo concha, as nádegas levantadas(…)”
De passagem, penso por causa dessa passagem no Rubem Fonseca, respiro um pouco e torno à moça da nobreza, que, porventura nossa real contemporânea, surgiria para nós desnudada, em sumário biquíni, abortando por completo o voo de nossa imaginação lasciva.
“(…) e um remeleixo do andar vagaroso que fixei para sempre. Mais tarde, quando pude dar comparações literárias a esses atributos físicos, colocava-os ora nas heroínas amplas e violentamente feminis de Machado de Assis, ora naquela fêmea cheia de curvas e luas-cheias da Empresa noturna de Bocage. Ela gostava de conversar andando para cá e para lá, batendo sonoramente o tacão do salto alto, levantando a cabeça, ostentando o busto e trocando devagar os passos. A projeção anterior das coxas, nessa marcha, desenhava dum lado e do outro dobras na saia azul que sugeriam as idênticas da primeira anágua; depois as da segunda anágua, mais a borda do colete devant-droit, a seguir as dobras da camisa, em baixo, as da calça de babados e folhos – por fim as duas últimas que eram as das virilhas. Todos olhavam e cada um ia despindo e tirando o ‘quanto cobria seu airoso corpo’.”
02 de agosto de 2015
(141)
Memórias/Memorialistas (XXI)
Poemas de uma paulista desgarrada (IV)
Você pode gostar

Obsessões musicais (XVII)
24/03/2019
Memórias/Memorialistas LXII
30/09/2019