Memórias/Memorialistas (XXI)

Mesmo para quem não sabe escrever, não é tão difícil tocar um blog: é só transcrever.

Há muito que emprego aqui tal “estilo de literatura” (vide postagem Riquixá). Que, por outro lado, tem suas regras, inclusive a de obediência ao direito autoral (coisa sagrada). Não sem algum critério, insta garimpar (ou melhor, abeberar) textos dos grandes mestres das letras provocando entusiasmo nos desapercebidos, eventuais leitores e leitoras daqui, docemente conduzidos à matéria evocada por este blogueiro pretensioso.

http://www.fotos.cim.br/page_img/10427/chafariz_jorrando_agua
http://www.fotos.cim.br/page_img/10427/chafariz_jorrando_agua

E a fonte que vem jorrando da obra dos meus memorialistas não seca nunca.

Retomemos o Pedro Nava. Irresistível é prosseguir com a cabeça enfiada no Baú de Ossos, não deixando isso, entretanto, de ser uma aflição porque ainda restam cinco livros completos das lembranças do fantástico escritor mineiro. Se é obrigatório terminar esse primeiro tomo, vou preterir as descrições primorosas do meu Rio de Janeiro da primeira metade do século passado e pinçar aleatoriamente retratos (a seguir, o primeiro deles) que, no duplo papel de médico e literato (não se sabe onde começa um e termina o outro), o Nava faz dos seus personagens – membros da família e amigos; inimigos, amigos dos inimigos, inimigos dos amigos et caterva -, espalhados pelo fim desse primeiro volume. Reenfatize-se, são verdadeiras dissecações.

“… a figura mais impressionante era a do agigantado Dr. Belisário Fernandes Tavora. (…). As maçãs do seu rosto eram maçãs mesmo. Tinham o aspecto, a cor luxuosa e o lustro da casca daquelas frutas quando polidas de encontro à roupa. Por cima o bogalho de dois olhos enormes guarnecidos pela mata das sobrancelhas. Aliás todos os seus traços eram enormes e como que magnificados por lente poderosa. Os bigodes festivos e a boca repuxada davam-lhe um ar hílare que, somado à bondade do olhar, tornavam-no extremamente simpático. Tinha orelhas insignes, zigomas memoráveis, arcadas orbitárias de frontão barroco e era de uma feialdade grandiosa e atraente. Apesar do cavanhaque e da triangulação de sua cara e cabeça, não tinha nada de mefistofélico. (…). Falava vagarosamente e em voz de baixo-profundo; era de uma cortesia meticulosa, de uma cerimônia vigilante e nada se comparava ao prodígio de seu andar. Trocava lentamente os passos de sete léguas; colocava cuidadosamente o salto no chão e seu pé avantajado e sensível descrevia um movimento de cadeira de balanço, elevando o calcanhar, depois a sola e apoiando finalmente o joanete, o metatarso varo e o resto dos pododáctilos. Pronto, para um lado. Começava a tortura do outro e o Dr. Belisário ia marchando, como aquela sereia de Andersen que trocou a cauda de peixe por pés – sobre cacos de vidro, fios de navalha, brasas vivas.”

 

29 de julho de 2015

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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