Memórias/Memorialistas (LV)

Acho que a resposta está em como o cérebro processa experiências e memórias não como registros dos sentidos em isolado, e, sim, um registro unificado do amálgama de tudo o que acontecia no momento, do lado de fora e de dentro do corpo.

 Suzana Herculano-Houzel

Oriundo das Minas Gerais, meu pai não era todavia muito discreto no jeitão e nos relacionamentos interpessoais. Quanto às preferências alimentares, não se lhe podia negar nascimento no estado das montanhas de ferro: o velho se liquefazia em lágrimas diante de um torresminho. Nada de levar ao prato comidas despercebidas no palato pois o que despenhava no esôfago havia de incendiar a boca do estombrago.

Em nossa casa, falta de picles era impensável. Nos almoços, cortavam-se os ingredientes acondicionados no vidro – pepino, couve-flor, cenoura, azeitona –, migalhas espalhadas pelos pratos condimentando a refeição de arte a tornar o feijão e também o arroz em iguarias saborosíssimas.

Nesse passo (ou nessa sentada – à mesa), aflora na minha mente a lembrança de O Pasquim, célebre e revolucionário jornaleco fundado por Jaguar, Ziraldo (pai da Daniela Thomas), Tarso de Castro (pai do João Vicente, do “Porta dos fundos”), entre outros, que tinha uma seção denominada  Picles, trocadilhos enviados pelos leitores (numa das edições, publicaram alguns de minha lavra; imaginem como eu me senti).

Estimulado pelo picles, palavrinha sobremodo picante, e substituindo o leite (mineiro, do Pedro Nava e do Afonso Arinos) pelo café (paulista), volto a me encontrar com o Paulo Duarte para inserir nesta postagem (precisarei de outras) algumas iguarias do Selva oscura (senhor revisor, não é obscura), volume 3 das memórias do grande antropólogo saído da cidade de Franca, autor de façanhas em prol do Brasil, máxime a de ter sido um dos fundadores da Universidade de São Paulo – USP.

De vida material sofrida, o memorialista sem embargo pontificava ao lado de figuras notáveis da política e da cultura – cito rapidamente Armando Sales e quase toda a família Mesquita, fundadora e proprietária do jornal Estadão – e nos anos de 1970 gratificou os leitores e leitoras com essa vasta e admirável obra, de que destaco estes trechos abordando os anos de 1920, mas que não deixam de significar críticas a uma parte da direita.

“Ora Pátria para muitos militares não tem o conteúdo do patriotismo, mas o da patriotice ou da patriotada. Pátria para tantos brasileiros é ficar imóvel, perfilado com emoção quando se desfralda a bandeira ou quando se toca o hino nacional. Os civis então, estes passaram a imitar os Estados Unidos; ‘nesses momentos solenes’ eles estufam o peito, chupam a barriga e põem a mão direita aberta sobre o coração. E proclamam que o nosso país é o maior do mundo; que as aves que gorjeiam lá fora não gorjeiam como as de cá; que o brasileiro é o maior povo do mundo; pensam até que a lama dos outros países é mais impura do que a nossa e chegam ao máximo de repetir sem pensar na incongruência: Deus é brasileiro. Voltaire, ironizando o conceito já caduco no seu tempo dizia risonhamente que o amor à Pátria é aquele que nos obriga a adorar como a um deus o nosso país e odiar como a um diabo todos os outros.”

Não saciado, parágrafos abaixo o Paulo Duarte se escora no auxílio luxuoso de declaração dada por ninguém menos que Rui Barbosa. A dupla aleatória fustiga o pessoal que clama por intervenção militar e se acha dono exclusivo dos símbolos da República.

“’A memória histórica conhece bem hoje o que sofreu este com a intromissão militar na proteção a governos despóticos, que só permaneceram com a guarda das baionetas do Exército e da sem-vergonhice de civis sabujos.’”

 Como este blog pouco ou nada lido não faz proselitismo, brevemente trarei à colação passagens do livro em tela nas quais o memorialista critica uma parte da esquerda.

06/04/2018

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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