Memórias/Memorialistas (LVI)

Eis porque adoro a conversa calma e amigável; o ambiente que acolhe e não acusa; a amizade que não pressupõe malícia da outra parte; a autoridade do saber,
e não a de mando; a democracia parlamentar, e não a tirania.

(Francisco Daudt)

Não me desprego do século p. passado, o foco ainda nas décadas iniciais, na companhia do Paulo Duarte, festejado pelo Érico Veríssimo, autor da obra formidável; em próximas postagens, deverá surgir a parte memorialística, constante nos livros Solo da Clarineta I e II, reafirmando compromisso que assumi aqui em 2015, não honrado.

Aos três mosqueteiros estrelas deste tópico do blog, os mineiros Afonso Arinos e Pedro Nava e o paulista Paulo Duarte, juntarei pois o escritor gaúcho (pai do Luiz Fernando Veríssimo) que bradou na contracapa do volume 3, Selva Oscura, ora em tela:

“Quero chamar a atenção de quem me lê para uma figura humana de nosso tempo, um certo Paulo Duarte… Trata-se fundamentalmente dum humanista a serviço dos direitos e da dignidade do homem…”

Evadiu-se da minha mente tisnada o fato de o Paulo Duarte haver percorrido as veredas do Direito. E que importância o advogado-antropólogo ou antropólogo-advogado não teria nestes nossos dias violentos e mesquinhos.

“(…) Desde a adolescência, a ciência criminológica me fascinava. Talvez o eco imenso de Lombroso e Ferri, depois. Creio mesmo que esse fascínio viera ao mesmo tempo que a atração pela Antropologia, a começar pela Pré-História… Li atabalhoadamente muita coisa a respeito até matricular-me na Faculdade de Direito, escola medíocre e desatualizada que, apesar de tudo, possuía alguns professores de respeito, como… Gama Cerqueira. Foi… quem me despertou vocação para a Criminologia. É que Gama Cerqueira, apesar de pouco assíduo à cátedra, era um grande professor. Culto, de uma clareza didática invejável, o único professor do meu tempo que atraía para as suas aulas esparsas alunos de outros anos e até alguns médicos e advogados já formados.”

Esse Gama me evoca mais uma vez meu professor de Medicina Legal na UnB (Hermes) da primeira metade dos anos de 1970, a capturar igualmente alunos de outros cursos fora do Direito (sobretudo os da Comunicação, os porra-loucas) para suas aulas, momentos em que, trajando indefectível jaleco, conduzia-se com pitadas mordazes e alusões as mais sacanas, um tapa na censura vigente, deixando nas lonjuras o tétrico, lúgubre ambiente do necrotério.

“(…) não foi difícil cair na atração exercida por Gama Cerqueira quando iniciei um estudo metódico da ciência criminal. Um dia, ou melhor, uma noite, em casa de Gama Cerqueira, já eu ia adiantadinho nos meus estudos, embebido na palestra tranqüila e lúcida deste, quando ele me falava da precariedade das penitenciárias de todo mundo que ainda encaravam o criminoso como um simples homem mau que devia ser castigado pelos seus crimes ou receber a justa vingança da sociedade(…)”

Fico me perguntando o que o Paulo Duarte, porventura reencarnado, acharia desta nossa época do Carandiru demolido com suas 111 almas penadas; do Pinhais coalhado de homens de colarinho branco (ou não); de Bangu 8 repleto de moradores saídos do Leblon e de bairros cariocas não menos nobres. Conservador embora, nosso bacharel da cidade de Franca narrava, com tinturas liberalizantes e atento às linhas da sociologia e da antropologia, os descaminhos daqueles que foram jogados naquilo que se chama do mundo do crime e lá permanecerão ou, libertados, para lá retornarão logo, porquanto impraticável apelarem (sem trocadilho) para o resgate da dignidade pela via do trabalho (que nem hoje existe) e assim reintegrarem-se à sociedade.

“(…) A maioria, mais de 70% dos condenados da penitenciária industrial de São Paulo é composta de homens do campo, lavradores transformados coercitivamente em operários de máquinas. Máquinas que os desadaptavam mas não os convertiam em trabalhadores industriais. Às vezes máquinas que não existiam no Brasil, como uma de abrir casas e pregar botões utilizada na alfaiataria do Carandiru. O trabalhador ou, melhor, a vítima aprendia a lidar admiravelmente com aquele maquinismo, mas quando de lá saía, não encontrava no Brasil inteirinho uma alfaiataria ou uma fábrica que possuísse o único instrumento com o qual aprendera a trabalhar. E não havia nem uma penitenciária agrícola.”

Sem perder de vista no meu horizonte os indivíduos que consideram aposento de luxo o cubículo no prédio da polícia federal em Curitiba onde “hospedado” Luis Inacio Lula da Silva, continuo a dirigir-me indagações. Que comentários tais progressistas fariam a respeito da tese defendida pelo memorialista no trecho a seguir, agora que se completa um mês de estada, permitidas visitas somente de alguns membros da família do ex-presidente e de seus advogados?

“(…) Acabar definitivamente com o absurdo isolamento total do encarcerado durante os três primeiros meses de cumprimento da pena. Um traumatismo desumano e inútil, pior ainda, que poderia marcar indelevelmente a vítima já enferma, pois o criminoso é um enfermo. Patologia Social semelhante à Patologia Clínica. Mas haveria ainda um hospital para tuberculosos condenados. A tuberculose é a enfermidade mais freqüente nos hospícios e nas prisões.”

Modificou-se coisa alguma no sistema prisional nesses mais de setenta anos transcorridos. Perduram os ataques de piolhos, doenças de pele até a disseminação do HIV, expectativas da população carcerária. A postagem chega ao seu termo aditando mais polêmicas, ainda que mitigadas pelo aconselhável distanciamento histórico.

“(…) O nosso projeto não ignoraria nenhum dos princípios da Criminologia moderna… era indispensável não só a liberdade condicional, a assistência ao egresso, senão também até, para determinados criminosos isentos de deformações congênitas, a prisão sem grades… João Pessoa tentou-o na Paraíba e, entusiasmado, me levou a visitar os condenados da capital daquele Estado, todos trabalhando em obras públicas, praticamente sem vigilância e nunca tivera um só caso de evasão. Quando visitei as instalações da Penitenciária, pedi os prontuários dos condenados que estavam entregues àqueles trabalhos, havia entre eles assassinos e ladrões, mas os assassinos eram todos sertanejos que mataram levados pela sanção social da região, quer dizer aqueles para os quais uma bofetada só se lava com sangue e a honra conjugal com a morte da mulher adúltera e do seu amante. Não eram pois assassinos propriamente, eram homens de uma sociedade que exigia o rito da morte para os culpados, para a reabilitação do marido ou do esbofeteado. Da mesma forma os ladrões, eram, de pequenos furtos e roubos de alimento para matar a fome, de armas necessárias à vida sertaneja, objetos de pouco valor que jamais poderiam servir de peça de diagnóstico de uma deformação pessoal profunda.”

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10/05/2018

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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