Memórias/Memorialistas (LVII)

E o perfume que tem cada coisa. O vento tem um perfume, a luz branca cheira a jasmim, o vermelho a maça,
o amor que a gente sente por alguém é cor de rosa… Posso sentir o perfume que exala de cada animal,
cada objeto, cada árvore, todo ser vivo ou morto.

(Monólogo teatral Sofia, de Dioclécio Luz)

Fosse meu blog lido por alguém, o que até hoje não aconteceu, iria pedir saltasse esta postagem (e a subsequente). A narrativa é literalmente visceral, Repugnante. Mas humana.


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O pessoal da medicina, da enfermagem, das ciências biológicas, da química não se surpreenderá com o mapa físico, fisiológico, desenhado pelo lápis implacável do Pedro Nava, que, em 1978, voava no tempo e retrocedia meio século para dar à luz impressões sobre… necropsia. Claro que a literatura do memorialista nos subjuga, nos deixa com os pulmões enfisematosos, menos ar do que o encontrado nos corpos objeto de estudos de patologia clínica.

“(…) era comum encontrarmos na mesa de autópsias o defunto que medicáramos vivo, na véspera. Isso no princípio era chocante, impressionava, aterrava. Depois esse sentimento foi sendo empurrado para as profundas do subconsciente, para jazer latente até que nosso terror o desenterre no pesadelo ou na consciência da nossa precariedade. A aventura da autópsia era uma estória de horrores bem mais terrível que a da dissecção. Nesta os cadáveres chegam tratados a solutos mumificantes e ratanizantes que dão-lhes lustres de madeira, aspeto de coisas imitando mortos e não mais o jeito de mortos. Sua protelada e tímida protelação fede a azedo, a ranço e sobretudo a formol. Naquela os cadáveres conservam sempre um aspeto do que tinham sido. Não eram raspados, às vezes ficavam-lhes peças de vestuário – pé de meia, por exemplo. Eram freqüentes medalhinhas de alumínio, bentinhos ensebados, os curativos. Esses eram retirados na hora da autópsia e descritos minuciosamente nas liqüescências. Sanguinolências e purulências que deixavam escorrer. Era tudo consignado no protocolo do exame do cadáver que, sem formol, fedia para valer. Porque ao contrário do que se pensa, os mortos fedem imediatamente e não esperam a convenção das vinte e quatro horas. Basta fendê-los.”

De outra parte, nestes nossos tempos uma vida foi poupada, felizmente. Se aquele mineiro tresloucado da Halfeld (essa rua de Juiz Fora permeia significativa parte da memorialística em foco) manejasse faca com a destreza de seu conterrâneo e não contemporâneo Nava, então aluno de medicina promissor, a morte do candidato a presidente da República agora eleito (não era o meu) arremessaria o país numa crise institucional de consequências devastadoras.

“(…) Eu entrei de rijo nesse mundo pegajoso pois tinha sido admitido pelo Carleto como seu monitor voluntário. Cabia-me abrir os corpos e eu fazia-o com perfeição. Incisava o tórax-abdome – em T, correndo a faca de ombro a ombro e depois noutro corte que ia até ao apêndice xifoide, continuava pela barriga e só parava no obstáculo ósseo do púbis. Descascava depois o tórax (como o Joaquim Câncio fazendo esqueleto) rebatendo para os lados o livrabertaomeio dos peitorais e das partes moles de todotronco. Depois, com faca mais curta decepava as costelas de fora a fora e então é que entrava o Carleto com seu avental imaculado e suas luvas de Chaput.”

Não tenho luvas, não uso jaleco, não posso ver sangue. Aliás, o oxigênio começa a me faltar. Cautelarmente, paro com a digitação. Na postagem seguinte, sem fazer uso do Plasil e do Rivotril, rima pobre, tornarei à minha cadeira de espectador infiltrado para, já restabelecido, assistir à performance do doutor Carleto.

#Monólogo teatral “Sofia”     #Dioclécio Luz     #Pedro Nava
#Necrópsia     #Autópsia     #Rua Halfeld     #Juiz de Fora     #Carleto     #Luvas de Chaput      #Plasil     #Rivotril

17/11/2018

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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