Memórias/Memorialistas (LVIII)

http://obviousmag.org/archives/2007/06/o_corpo_humano.html

A morte, na sua indiferença absoluta, é o limite da sedução
dos engajamentos sociais. Por isso, ela tem o poder de fechar feridas,
enterrar ternuras e inaugurar saudades.
(
Roberto Damatta)

Arrematei a postagem anterior, que com esta se coliga em todo o seu enredo, com a declaração de que não uso luvas, nem as de Chaput. Evitando destoar do habitat natural dos colegas do Nava, calçarei luvas, mas de pelica.

Não sendo médico, fui ter com a necropsia apenas por virtude dos meus estudos de Direito na Universidade de Brasília, iniciados em 1972, quando o curso de ciências jurídicas ainda estava albergado em departamento, e não em faculdade, como viera a acontecer tempos depois, eu já detentor do canudo.

Aliás, em dupla jornada (eu já era servidor do Banco Central), venci no Minhocão todas as matérias – pois na UnB ainda não existia prédio próprio para a turma do terninho e do cafonérrimo anel de rubi.

E o meu mestre da Medicina Legal, professor Hermes, tão decantado merecidamente neste blog, honrou a tradição do Carleto.

“Ele eviscerava com técnica, puxando a língua, os órgãos profundos do pescoço, traquéia esôfago a massa pulmões coração. Ligava o cardia e começava a desenrolar a naja gastrintestinal desde seu alargamento superior, seguindo suas dobras nacaradas no delgado, cinzentas no colo e armando o bote na sigmoide. Aí ligava junto ao ânus e aquela sucuri ia para uma pia, e para as mãos de Seu Domingos que abria-a de fora a fora sob o jorro de torneira. Um cheiro de merda mais forte atroava os ares misturando-se ao enjoativo da decomposição começada das carnes frescas e dos miúdos. Enquanto isso o Carleto continha um coração que parecia querer pular ainda depois de morto, abria-o, ventrículos, aurículas, mostrava a seda das válvulas, as cordoalhas, raspava a aorta e apontava o esbranquiçado de cera da ateromatose que tirava a elasticidade daquele macarrão.”

Estaciono no trecho supracitado. Sintomaticamente, passo a desconfiar do compromisso de literalidade do Pedro Nava por me parecer que o maior memorialista brasileiro abandonara os lindes dos ensinamentos clínicos em aula para adornar com metáforas a condição de pessoas que padeceram por amor não correspondido. Quantos de nós podem negar a pretensão em manter o relacionamento conjugal já nos estertores? Pulemos essa fraquejada. 

O Carleto continuava a função (macabra?), durante a qual, perante a maca, o aluno cdf promovido a monitor se entristecia com os “do bem” que passaram desta para melhor, sem no entanto esconder o regozijo com os “do mal” na medida em que passageiros desafortunados do mesmo trem.

“Passava para a língua, abria esôfago e depois a traquéia-artéria, brônquios e era uma Niágara de catarro. Cortava maciamente cada pulmão que recalcitrava sob a faca, chiando de leve e de fatia em fatia, fazia surgir o vácuo das espeluncas ou a renitência das pneumonias e dos cânceres. Sob as pleuras corriam os desenhos japoneses da pneumoconiose traçados a bicos de pena pelo fumo, pelas poeiras, pelos resíduos das oficinas. De víscera em víscera o nosso mestre passava seu exame, ditando com voz fria e igual os termos padronizados do relatório. Pesava órgão por órgão. Descascava-os (ruído de seda da cápsula renal arrancada), descorticava-os, fazia-os lascas e mostrava a lesão que tínhamos ontem palpado, percutido, auscultado. Esse encontrar do doente no cadáver foi minha melhor escola clínica e tal conhecimento, nova fonte do martírio que me acompanha – diagnosticar sem querer na cara dos amigos e parentes queridos o que lhes rói e ver através de seu corpo para mim translúcido, aquelas lesões hediondas que nos mostrava o professor de Anatomia Patológica. É verdade que também compensa ver certos sinais nas caras e nas orelhas transparentes dos desafetos…”

Desde o começo desses tópicos da saudade – já são cinquenta e oito Memórias/Memorialistas, acusam os algarismos romanos lá do título -, venho intercalando presunçosas observações, por isso que sempre com a leve impressão de que maculo os escritos lavrados pelo ora legista e pelos outros dois memorialistas abduzidos ilicitamente por este blog, o Paulo Duarte e o Afonso Arinos. Que petulância entrecortar as fertilíssimas histórias de vida desse trio. Munam-se vocês (tem alguém aí?) de ousadia e enfrentem o fecho desta postagem, em que, no ambiente contagioso mas não contagiante, o Nava nos dá conta de nossa vil e apalermada existência. Niilismo na veia

“Terminada a evisceração eu sempre me espantava com o pouco, o nada que ficava. Afinal é só isto? Onde estamos nós? nós, mesmos? a chama de nós mesmos? Para quê? para quê? afinal tanto dano, tal celeuma… Estava tudo ali, o zero, à minha frente nas cores luxuosas, cintilantes e decorativas daquelas vísceras molhadas de sangue rútilo, pus dourado e monco sinopla. Tudo sangue como um Nilo fecundo fazendo nascer calor, vida, pensamento do cérebro e nutrição dos pulmões que separam o oxigênio para dá-lo ao mesmo sangue. Tudo para o movimento dos músculos, a fome, a força, o sexo. Olhava-os. Os das mulheres como pelancas às vezes deixando escapar corrimentos, os dos homens com a incongruência de trombas moles pendendo. Tudo aquilo – então turgente – se encontrava em vida, para a fabricação incessante das putinhas rosadas e dos bandidozinhos tenros que no futuro continuariam putas e bandidos só que não tenros que não mais rosados. Ásperos. Agora estava ali o sexo para sempre inútil e seus donos reduzidos ao fim (…). Prontos e despidos para a grande gala da putrefação. Esse triunfo de vida na morte. Está começando. Dentro em pouco a multidão de vermes ainda presa na forma – como população de uma Babilônia cercada de muros. Mas logo sua derrocada, o estouro e o fogo de artifício de miríades de vidas saindo da morte individual de cada um de nós. Arco-íris versicolor das cores da podridão – cor de molho de carne estragada e cor de vinho virando vinagre.”

Imaginem que tudo isso consta do Beira Mar, nome poético do quarto volume das memórias do Nava, que deixava as Minas Gerais para se fincar no Rio de Janeiro.

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24/11/2018
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mmsmarcos1953@hotmail.com

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