Memórias/Memorialistas (XLVII)

Me esforçava, e nada de conseguir dar seguimento às postagens. Em situação de ser declarado conteudista falido, busquei novas energias e decidi que era o momento de verificar o diagnóstico e obter a cura, pena de não contar mais com a solidariedade dos pouquíssimos leitores e leitoras que eventualmente leem este blog.

Peguei o endoscópio e fui eu mesmo prescrutar meu cérebro. Mãos trêmulas, tomado inteiro pelo suor frio, enxerguei predominantes zonas cinzentas, nebulosas, até que o facho de luz do aparelho se dirigiu para um cantinho recôndito e insuspeitado onde numa primeira mirada não consegui identificar, por causa do líquor, o que dizia aquele texto. Aproximei dessa região craniana o espelhinho com seus prismas coloridos e pude então constatar que se tratava de uma receita prescrita por famoso neurologista: recomendava o médico que mais uma vez eu devesse pedir ajuda a um dos três geniais memorialistas que aqui têm me ajudado até então.

“(…) A nova Matriz tivera que paralisar as suas obras por falta de recursos. O padre Conrado, um cristão verdadeiro, há longos anos vigário da cidade, do qual eu era o afilhado de crisma e me fizera o mais dedicado ou um dos mais dedicados dos seus acólitos da missa, passara a viver dias desesperados por não poder terminar a sua igreja. Meu Pai teve uma idéia: representar uma peça de teatro montada e encenada com rapazes e moças da cidade contando até quinze anos. O padre Conrado mexeu a cabeça desanimado. Como encontrar crianças capazes de representar, quem as poderia preparar e ensaiar e, além disso, nem cenários existiam no pobre Teatro Santa Clara, do Largo do Barão da Franca, abandonado havia tantos anos porque os próprios ‘mambembes’ não se atreviam a chegar à longínqua cidade a não ser lá cada dois ou três anos?…

Recorri ao Paulo Duarte (ainda me deleito com a releitura do vol 2 das memórias, A inteligência da fome), menos pela exaltação que faz aos dons e predicados do pai e mais pelo lado pitoresco de episódio ocorrido nas primeiras fases do século passado.

Quem das cênicas dos dias atuais poderia conceber que, há cem anos, uma igreja – não qualquer uma, a matriz – da cidade paulista de Franca seria socorrida financeiramente pelo teatro, segmento das artes em que pululam atores/atrizes, iniciantes ou não, à cata de verbas públicas e privadas para levantar um espetáculo?

“Meu Pai sossegou o vigário. Ele montaria a peça, escolheria e ensaiaria o drama e pintaria os cenários!… Ninguém acreditou. Sabiam que ‘seu Hermínio” era capaz de muita coisa, mas aquela, não! Era demais. O padre Conrado trouxe-lhe uns números da revista católica Vozes de Petrópolis que ele assinava. Em três números seguidos publicara uma peça muito ingênua, cujo assunto era um episódio da perseguição aos cristãos da Roma de Nero ou qualquer outro igualmente feroz. Chamava-se a peça Sempre jovem e sempre Bela, mas era difícil de representação, por causa das modificações por ele introduzidas, aparições de anjos, desmistificação de pagãos poderosos, havia até uma grande pedra que se partia ao meio para aparecer um anjo luminoso e resplendente. Pois ele tudo resolveu…”

Imagina-se a inocência da peça teatral. Se o velho Hermínio Duarte, o pai, fosse igual ao filho… Quaisquer palavrões, mesmo os não cabeludos, ouvidos numa rodinha de amigos desbocados deixavam o Paulo Duarte amuado e arredio. A deseducação caracterizava crime, e crime hediondo se perpetrada na presença de mulheres.

Outra revelação que me deixou assim, assim. Eu sempre soube que para ser ator/atriz imprescindível é reunir talento e vocação. O primeiro é dom, nasce-se com ele; o segundo é ralação, relação e ralação, jamais desistir. Porém, eu não sabia que a turma do palco era formada pelos mais sábios e argutos.

Ao menos na seleção de elenco feita pelo diretor Hermínio.

“Escolheu as crianças mais inteligentes, ensaiou-as, desenhou as vestimentas de todas as personagens, ensinou até a cosê-las, passou três meses dentro do Santa Clara pintando os cenários, palácios, circo romano, templos, catacumbas, o diabo. Os ensaios se faziam dentro do próprio teatro, no meio de uma barafunda de cordoame, bastidores, panos de fundo, pois até as carretilhas para a mudança dos cenários e mágica dos milagres, ele preparou e fabricou pessoalmente. O ensaio geral quase matou o padre Conrado de alegria. As crianças corresponderam admiravelmente às instruções dos ensaios dirigidos com segurança. Algumas meninas e meninos foram até revelações como atores e atrizes…”

Fim da postagem. Sobressai minha inveja (das boas) e admiração pelo grupo teatral de Franca, realizador de iniciativa que prosperou

“O espetáculo teve que ser repetido, tal o êxito que teve. E, ao fim, as obras da nova matriz puderam ser retomadas, pois havia dinheiro para mantê-las… A experiência repetiu-se com o mesmo brilho, durante alguns anos com peças novas, mas sempre de atuação no mesmo campo religioso.”

e de algum tempo para cá veio a se tornar filão explorado pelos espíritas (quanto da obra de Chico Xavier já se levou ao palco?), pelos católicos (Paixão de Cristo em Pernambuco e no morro da Capelinha, da nossa Planaltina) e pelos evangélicos (encenações teatrais apresentadas originalmente sob formato de telenovela).

235_teatro

06 de março de 2017

(235)

mmsmarcos1953@hotmail.com

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *