Memórias/Memorialistas (XXIII)

“Minas não esquece. Minas é boa de lembranças. Livro de mineiro está sempre relembrando. O passado é o adubo da alma. Como em Guimarães Rosa e Pedro Nava. Ou em Drummond.” (Sebastião Nery)

Largar na estante o Baú de ossos, não processando mais um episódio do início do século passado. É promessa que faço ao Pedro Nava – sem ele perceber que cruzo os dedos. Não me envergonho disso, dessa mentira sincera, não é mesmo, Cazuza?

“(…) a febre subiu, virou febrão e começou em minha Mãe a infecção contraída tratando da sobrinha. Meu Pai chamou logo o Dr. Duarte. O Dr. Duarte pediu a presença de um especialista de senhoras e indicou o Dr. Lincoln de Araújo, vizinho de bairro que, coerentemente, tinha domicílio na Rua dos Araújos.”

Ignoro a razão por que o Nava escrevia pai e mãe com maiúsculas. Talvez fosse o costume da época: cinzelar o respeito e a deferência à genitora e ao genitor também no mundo da letras, da literatura. Desconsideremos. Vamos nos prender na farmacologia (imaginem que Electrargol devia doer paca), no ritual de médicos se encontrando, se congregando, se preparando para cuidar, e cuidando, da doente.

“Lembro-me bem de sua figura: fino, pequenino, magricela, olhos vivos, bigodes e cavanhaque, sempre de fraque cinza e chapéu do Chile. Ele e o Dr. Duarte ministraram a quinina, o laudanum, as cataplasmas emolientes; manipulavam os drenos, os irrigadores; instituíram uma dieta de fome e sede, mas admitindo três ou quatro taças de champanha por dia. Quando as coisas ficaram pretas, mandaram chamar o Dr. Miguel Couto. Horas antes da marcada para sua visita já estava brunida a bacia de prata, escolhida a mais rendada toalha de linho e desembrulhando o sabonete de Reuter novo em folha para o sacerdote purificar as mãos. Meu Pai foi buscá-lo de carro. À sua chegada, o Dr. Lincoln e o Dr. Duarte receberam-no no topo da escada. Trancaram-se na sala. Depois subiram.”

O segundo texto acima posto desenha o perfil do Dr. Lincoln de Araújo; no que apresento a seguir, desmembrado daquele para situarmos cada um em seu espaço cênico, o memorialista recorta o do Dr. Miguel Couto, a quem o menino Nava, futuro médico renomado, vira atuar e que para nós, pobres mortais, é nome de importante hospital público na zona sul do Rio de Janeiro.

“O Couto fez esvaziar uma mesa e ele próprio, com seus braços possantes, tirou a doente da cama para estendê-la no móvel duro onde iam examiná-la. Desceu e pude gravar indelevelmente sua figura. Nesse tempo o vitiligo ainda não o arianizara como na velhice e, em vez do rosado despigmentado que ele apresentava no fim da vida, tinha uma bela cor acobreada de moreno. Trazia da parte posterior da cabeça um pouco de cabelo, disfarçando a calva invasora. Sombra de olhos serenos e mansos, dentro do poço das olheiras. Os bigodes como roscas da Penha, como duas volutas entalhadas em ébano. Vestindo uma sobrecasaca marrom e a calça colante e estreita que lhe moldava a perna (anos mais tarde, um seu alfaiate que me cosia os ternos revelou que isto era uma de suas exigências).”

Minha mãe, Dulcinéa, não logrou escapar, digamos assim. Octogenária, internada na UTI, aqui em Brasília, embarcou há dois anos e seis meses numa carruagem com destino a outro plano, enquanto que a Mãe do nosso escritor, entregue ao Dr. Miguel Couto…

“No fim da visita nem sentou. Enquanto lavava as mãos, disse que estava de acordo com tudo que faziam os colegas, mas que queria apenas lembrar que dessem à doente injeções de Electrargol. E você, Nava, vá todos os dias ao consultório para me dar notícias. O Dr. Duarte e o Dr. Lincoln foram levá-lo até o portão da rua, meu Pai até sua casa, de carruagem. Minha Mãe salvou-se(…)”

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15 de agosto de 2015
(143)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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